sábado, 12 de setembro de 2009

Shelley, Mary

Um detalhe relevante: mesmo alquebrado como estava, tinha um profundo sentimento do belo em relação à natureza. O céu estrelado, o mar e todos os panoramas surpreendentes que essas regiões oferecem, tudo parecia ter ainda a faculdade de elevar-lhe a alma. Um homem assim tem dupla existência: por mais que sofra e esteja avassalado por decepções, fica, quando se recolhe a si mesmo, rodeado por uma auréola na qual não penetram a dor ou a revolta.

*

Lençois de neblina subiam dos rios que corriam através da baixada, encrespando-se como densas coroas em volta das montanhas opostas, cujos píncaros perfuravam as nuvens, enquanto a chuva jorrava do céu plúmbeo, aumentando a impressão melancólica que o ambiente exercia sobre mim. Por que - ai de mim! - há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se confinassem à fome, sede e desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena para provocar-nos as mais diversas e inesperadas vocações.

*

Fiquei caminhando pelo aposento, em grande excitação. Arrependi-me de tê-lo deixado partir. Devia ter entrado em luta mortal com ele, opondo à sua força descomunal todo o poder da minha razão.

Retirado do livro Frankenstein, tradutor Éverton Raulph, editora Ediouro.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Trevisan, Dalton

Os pardais o acordam de manhã. "Malditos!" gemendo, enterra a cabeça no travesseiro. Malditos pardais - o dia: mais um dia. Quietinho, morde o lençol, abafa os gritos: "Não acordei, estou dormindo. Não são os pardais, mas os grilos..." Quem dera esganar todos os pardais da cidade.
Cabeça nas mãos, repete sempre - "São os grilos, eis que são os grilos." Em vez de abrir a janela, acende a luz.
Onde a coragem de enfrentar o espelho? Sobreviveu ao pior: já faz a barba. Não mais ver aquela cara e, coçando o queixo, interrogar-se: "Para quê?".
O espelho nunca deu a resposta. Resiste aos dias, com ódio dos pardais. Ah, não piassem com tanta alegria, quem sabe o sol deixasse de nascer.
O queixo ensaboado, xinga-se em voz baixa: "Por que não morre?". Ao frio da navalha, os dedos tremem. Alcança a garrafa, bebe no gargalo. Dos olhos escorrem gotas de amargura, nem sequer lágrimas.

Trecho à cima retirado do livro Novelas Nada Exemplares, conto Quarto de Hotel.

*

Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista. Vampiro sim, de almas. Espião de corações solitários, escorpião de bote armado. Eis o contista. Só invente o vampiro que exista. Com sorte, você adivinha o que não sabe. Para escrever mil novos contos, a vida inteira é curta. Uma história nunca termina. Ela continua depois de você. Um escritor nunca se realiza. A obra é sempre inferior aos sonhos. Fazendo as contas percebe que negou o sonho, traiu a obra, cambiou a vida por nada. O melhor conto só se escreve com tua mão torta, teu avesso, teu coração danado. Todas as histórias, a mesma história, uma nova história. O conto não tem mais fim senão começo. Quem me dera o estilo do suicida em seu último bilhete.

sábado, 1 de agosto de 2009

Kane, Sarah

Preciso me tornar quem já sou e bradarei contra esta incongruência que me destinou ao inferno

*

eu achei que era silêncio
até se fazer silêncio

*

Muitas pessoas me conhecem, elas não estão apaixonadas por mim

*

Ela pára com a farsa diária de passar as próximas horas tentando evitar o fato de que ela não sabe como irá passar os próximos quarenta anos.

*

Você só pode se matar se você não estiver morto.

*

Toda a minha vida é uma eterna espera para ver a pessoa por quem estou no momento obcecada, e passo semanas faminta até nosso próximo encontro de quinze minutos.

*

Uma garotinha foi ficando cada vez mais paralisada por causa das brigas frequentemente violentas de seus pais. Às vezes ela ficava horas no banheiro em pé e completamente imóvel, simplesmente porque era lá que por acaso ela estava quando a briga começava. Por fim nos momentos de calma, ela começou a pegar garrafas de leite da geladeira ou da porta de entrada e as deixar em lugares onde mais tarde ela poderia ficar presa. Seus pais não conseguiam entender por que achavam garrafas de leite azedo espalhadas pela casa toda.

*

Não encha meu estômago se você não pode encher meu coração.

*

é da natureza do amor desejar um futuro

*

Num acostamento da estrada saindo da cidade, ou talvez entrando, dependendo de onde você olha, uma garotinha negra está sentada no banco de passageiros de um carro estacionado. Seu velho avô abre o zíper da calça e aquilo salta para fora, grande e roxo.
E quando ela chora, seu pai no banco de trás diz Desculpe, normalmente ela não é assim.
E embora ela não consiga lembrar não consegue esquecer.

*

E se isso não faz sentido então você está entendendo perfeitamente.

*

Eu não bebo. Odeio cigarro. Sou vegetariano. Não fico fodendo por aí. Nunca procurei uma prostituta e nunca tive nenhuma doença sexualmente transmissível além de sapinho. Posso não ser o único, mas que sou uma raridade, isso sou

*

Você até que parece feliz para quem não está

*

Quero dormir ao seu lado e fazer suas compras e carregar suas sacolas e lhe dizer o quanto eu amo estar com você mas eles continuam me obrigando a fazer coisas estúpidas. E eu quero brincar de esconde-esconde e lhe dar minhas roupas e lhe dizer que eu gosto dos seus sapatos e me sentar na escada enquanto você toma banho e massagear seu pescoço e beijar seus pés e segurar sua mão e sair para comer e não me importar quando você comer a minha comida e me encontrar com você no Rudy e falar sobre como foi o dia e datilografar suas cartas e carregar suas caixas e rir da sua paranóia e lhe dar fitas que você não vai ouvir e assistir a bons filmes e assistir a filmes horríveis e reclamar do rádio e tirar fotos de você quando você estiver dormindo e levantar para lhe trazer café e torradas e geléia e ir ao Florent e tomar café à meia-noite e deixá-la roubar meus cigarros e nunca achar os fósforos e contar para você o programa de TV que eu vi na noite passada e ir com você ao oculista e não rir das suas piadas e desejá-la de manhã mas deixá-la dormir mais um pouco e beijar suas costas e acariciar sua pele e lhe dizer o quanto eu amo seu cabelo seus olhos seus lábios seu pescoço seus seios sua bunda suae me sentar na escada e fumar até seu vizinho chegar em casa e me sentar na escada e fumar até você chegar em casa e me preocupar quando você estiver atrasada e me surpreender quando você chegar mais cedo e lhe dar girassóis e ir à sua festa e dançar até não poder mais e me desculpar quando eu estiver errado e ficar feliz quando você me perdoar e olhar suas fotos e desejar tê-la conhecido desde sempre e ouvir sua voz no meu ouvido e sentir sua pele na minha pele e ficar assustado quando você se zangar e um dos seus olhos ficar vermelho e o outro azul e seu cabelo cair para a esquerda e seu rosto parecer oriental e lhe dizer que você é deslumbrante e abraçá-la quando você estiver ansiosa e segurá-la quando você se machucar e desejá-la toda vez que eu sentir seu cheiro e magoá-la quando tocar em você e choramingar quando estiver ao seu lado e choramingar quando não estiver e babar nos seus seios e cobri-la de noite e sentir frio quando você tirar meu cobertor e calor quando você não o tirar e me derreter quando você sorrir e me dissolver quando você gargalhar e não entender por que você acha que eu a estou rejeitando quando eu não a estou rejeitando e me perguntar como você pôde achar que alguma vez eu a rejeitei e me perguntar quem é você e aceitá-la de qualquer jeito e lhe falar sobre o anjo da árvore o menino da floresta encantada que voou através do oceano porque ele a amava e escrever poemas para você e me perguntar por que você não acredita em mim e ter um sentimento tão profundo que eu não consiga encontrar palavras para expressá-lo e querer lhe comprar um gatinho do qual eu ficaria com ciúmes porque você daria mais atenção a ele do que a mim e segurá-la na cama quando você tiver que ir embora e chorar feito criança quando você finalmente for embora e me livrar das pontas e lhe comprar presentes que você não gosta e levá-los de volta e pedi-la em casamento e ouvi-la dizer não mais uma vez mas continuar pedindo porque apesar de você achar que eu não estou falando sério eu sempre falei sério desde a primeira vez que a pedi em casamento e andar pela cidade achando que ela está vazia sem você e querer o que você quiser e achar que estou me perdendo mas saber que estou seguro quando estou com você e lhe contar o que eu tenho de pior e tentar lhe dar o que eu tenho de melhor simplesmente porque é isso que você merece e responder às suas perguntas quando eu teria preferido não responder a elas e lhe dizer a verdade mesmo quando eu não o queira e tentar ser honesto porque eu sei que você prefere assim e achar que está tudo acabado mas demorar-me por mais uns dez minutos ao menos antes de você me expulsar da sua vida e se esquecer de mim e tentar ficar mais perto de você porque é maravilhoso aprender a conhecê-la e vale a pena o esforço e falar muito mal em alemão com você e pior ainda em hebraico e fazer amor com você às três da manhã e de algum modo de algum modo de algum modo expressar um pouco deste esmagador imortal irresistível incondicional envolvente revigorante vivificante ininterrupto infindável amor que eu sinto por você.

*

Daqui um ou dois dias eu vou voltar para o meu outro caso, embora este caso esteja durando tanto que quase parece um relacionamento.

*

não diga não para mim você não pode dizer não para mim porque é um alívio tão grande amar de novo e deitar na cama e ser abraçado e tocado e beijado e adorado e seu coração saltará quando você ouvir minha voz e vir meu sorriso e sentir minha respiração no seu pescoço e seu coração vai disparar quando eu quiser vê-la e eu mentirei para você desde o primeiro dia e a usarei e penetrarei em você e partirei seu coração porque você partiu o meu primeiro e você me amará mais a cada dia até o peso se tornar insuportável e a sua vida se tornar minha e você morrerá sozinha porque eu levarei o que quiser então irei embora sem lhe dever nada está sempre lá sempre esteve lá e você não pode negar a vida que você sente foda-se a vida foda-se a vida foda-se a vida agora que eu a perdi

*

Agora que eu te encontrei posso parar de me procurar

*

M – Você ouve vozes?
B – Só quando falam comigo.
A – Almas exaustas com bocas secas.

*


Eu não estou doente, só sei que a vida não vale a pena ser vivida.

*

O círculo é a única forma geométrica definida pelo seu centro. Aqui não tem essa de galinha e ovo, o centro veio primeiro, a circunferência vem depois. A terra, por definição, tem um centro. E só o idiota que o conhece é que pode ir aonde quiser, pois o centro vai mantê-lo no chão, impedindo-o de sair da órbita. Mas quando sua sensação do centro se desloca, vem zunindo para a superfície, o equilíbrio já era. O equilíbrio já era. O equilíbrio meu bem já era.

*

Eu costumo conseguir chorar mas agora estou além das lágrimas

*

a única médica que me tocou voluntariamente, que olhou nos meus olhos, que riu do meu humor mórbido falado numa voz vinda de dentro do meu túmulo recém-cavado, que tirou um sarro quando eu raspei minha cabeça, que mentiu e disse que era legal me ver. Que mentiu. E disse que era legal me ver. Eu confiei em você, eu amei você, e não é perder você que me machuca, mas sim sua falsidade fodida e descarada que se mascara em notas médicas.

*
- Você despreza todas as pessoas infelizes ou só especificamente a mim?
- Eu não desprezo você. Você não tem culpa. Você está doente.
- Eu não acho.
- Não?
- Não. Estou deprimida. Depressão é ódio. É o que você fez, você que estava lá e que está se culpando.
- E quem você está culpando?
- A mim mesma.

*

Às vezes eu me viro e sinto o cheiro de você e eu não posso seguir eu não posso seguir foda-se sem expressar essa terrível tão fodidamente horrorosa física dolorosa fodida saudade que eu tenho de você. E eu não posso acreditar que posso sentir isso por você e você não sente nada. Você não sente nada?

*

Eu nunca na minha vida tive problema em dar a outras pessoas o que elas querem. Mas ninguém jamais foi capaz de fazer isso por mim. Ninguém me toca, ninguém se aproxima de mim. Mas agora você me tocou em algum lugar tão fodidamente profundo que eu não consigo acreditar e eu não consigo ser assim para você. Porque eu não consigo te achar.

*

- Por favor. Não desligue minha mente na tentativa de me curar. Ouça e entenda, e quando sentir desprezo não o expresse, pelo menos não verbalmente, pelo menos não para mim.

*

Eu não me matei antes então não procure precedentes

*

eu não tenho nenhum desejo da morte
nenhum suicida jamais teve

*

Ela está falando dela mesma na terceira pessoa porque a idéia de ser quem ela é, de reconhecer que ela é ela mesma, é mais do que seu orgulho pode suportar

*

Sou eu mesma que eu nunca encontrei, cuja face está colada no lado inferior da minha mente

retirado dos textos Crave e Piscicose 448

terça-feira, 14 de julho de 2009

Quintana, Mario

Intermezzo

Nem tudo pode estar sumido
ou consumido...
Deve – forçosamente – a qualquer instante
formar-se, pobre amigo, uma bolha de tempo nessa Eternidade...
e onde
- o mesmo barman no mesmo balcão,
por trás a esplêndida biblioteca de garrafas,
fonte de nossa colorida erudição –
haveremos de continuar aquela nossa velha discussão
sobre tudo e nada
até
que, fartos de tudo e nada,
desta e da outra vida,
a rir como uns perdidos,
a chorar como uns danados,
beberemos os dois nos crânios um do outro...
até o teto desabar!

(Perdão! até a bolha rebentar...)

*

Astrologia

Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além...

— Meu Deus, o que é que esse menino tem? —
Já suspeitavam desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!

E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...

Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto

*

A missa dos inocentes

Se não fora abusar da paciência divina
Eu mandaria rezar missa pelos poemas que não
Conseguiram ir além da terceira ou quarta linha,
Vítimas dessa mortalidade infantil que, por ignorância dos pais,
Dizima as mais inocentes criaturinhas, as pobres...
Que tinham tanto azul nos olhos,
Tanto que dar ao mundo!
Eu mandaria rezar o réquiem mais profundo
Não só pelos meus
Mas por todos os poemas inválidos que se arrastam pelo mundo
E cuja comovedora beleza ultrapassa a dos outros
Porque está, antes e depois de tudo,
No seu inatingível anseio de beleza!

*

Deixa-me seguir para o mar

Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar
Um fantasma...
Deixa-me ser o que sou,
O que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
Me recamarei de estrelas como um manto real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
É não poder parar!

*

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim…
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir…
(...)

*

Ao longo das janelas mortas

Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!...Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrivel!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos, Nosso
Senhor, as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação,
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai, cobri com a santa inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho...

*

Canção de outono


O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida...

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
de carícia a contrapelo...

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte alguma!

*

A rua dos cataventos


Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
(...)

Trechos à cima retirados de Quintana de Bolso, da editora L&PM pocket.

esse mundo, pode ser que não preste, mas é tão bom de olhar.

*

se tu me amas, ama-me baixinho
não o grites de cima dos telhados
deixa em paz os passarinhos
deixa em paz a mim
se me queres,enfim,tem de ser bem devagarinho.
amada,que a vida é breve, e o amor
mais breve ainda

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Benedetti, Mario

No te quedes inmóvil
al borde del camino
no congeles el júbilo
no quieras con desgana
no te salves ahora
ni nunca
no te salves
no te llenes de calma
no reserves del mundo
sólo un rincón tranquilo
no dejes caer los párpados
pesados como juicios
no te quedes sin labios
no te duermas sin sueño
no te pienses sin sangre
no te juzgues sin tiempo

pero si
pese a todo
no puedes evitarlo
y congelas el júbilo
y quieres con desgana
y te salvas ahora
y te llenas de calma
y reservas del mundo
sólo un rincón tranquilo
y dejas caer los párpados
pesados como juicios
y te secas sin labios
y te duermes sin sueño
y te piensas sin sangre
y te juzgas sin tiempo
y te quedas inmóvil
al borde del camino

y te salvas
entonces
no te quedes conmigo

Retirados de A Trégua
Era um bêbado estranho, com uma luz especial nos olhos. Me tomou pelo braço e disse, quase se apoiando em mim: "Sabe o que acontece com você? É que você não vai a lugar nenhum." Outro sujeito que passava nesse instante me olhou com uma alegre dose de compreensão e até me consagrou uma piscadela de solidariedade. Mas já faz quatro horas que estou intranquilo, como se realmente não fosse à parte alguma e somente agora me houvesse inteirado disso.

*

Uma coisa é evidente: se, por um lado, as atitudes extremistas provocam entusiasmo, arrebatam os outros, são indícios de vigor, por outro, as atitudes equilibradas são geralmente incômodas, às vezes desagradáveis, e quase nunca parecem heróicas. Em geral, é preciso bastante coragem (um tipo muito especial de coragem) para manter o equilíbrio, mas não se pode evitar que aos demais isso lhes pareça uma demonstração de covardia. Além disso, o equilíbrio é maçante. E o equilíbrio é, hoje em dia, uma grande desvantagem que em geral as pessoas não perdoam.

*

Seu rosto estava tenso, endurecido. Logo, sem aviso prévio, pareceu que todos os seus recursos se afrouxavam, como se tivesse renunciado a uma máscara insuportável, e assim como estava, olhando para cima, com a nuca apoiada contra a porta, começou a chorar. E não era o famoso pranto de felicidade. Era esse pranto que sobrevém quando alguém se sente opacamente desgraçado. Quando alguém se sente brilhantemente desgraçado, então sim vale a pena chorar acompanhado de tremores, convulsões e, sobretudo, com público. Mas, quando além de desgraçado, alguém se sente opaco, quando não há espaço para a rebeldia, o sacrifício ou o heroísmo, então é preciso chorar sem ruído, porque ninguém pode ajudar e porque se tem consciência de que isso passa e ao final se retoma o equilíbrio.

*

Mas resisto a essa tentação. São pessoas. Não parecem, mas são. E pessoas dignas de uma odiosa piedade, da mais infamante das piedades, porque a verdade é que eles formam para si uma casca de orgulho, um invólucro repugnante, uma sólida hipocrisia, mas no fundo são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem da mais horrível variante da solidão: a solidão de quem não tem sequer a si mesmo.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

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com os relacionamento anteriores aprendi:Que existem pessoas que te acrescentam coisas boas, algumas que não te acrescentam em nada e outras que acabam sempre tirando algo bom de você.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Espanca, Florbela

A partir daqui retirados de Poesia de Florbela Espanca vol.2 editora L&PMpocket

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

*

Eu tenho lido em mim, sei-me de cor(...)

*

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
De um estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!

Caravelas doiradas a bailar...
Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...

*

Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… Deixa-os tombar.

*

Até agora eu não me conhecia,
julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia
mesmo que o soubesse, o não dissera…
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim… e não me via!

Andava a procurar-me - pobre louca!-
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,
E a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!

*

(...)
Cerro um pouco o olhar, onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo
- Um grande amor é sempre grave e triste.

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo...
Uma torre ergue ao céu um grito agudo...
Tua boca desfolha-me num beijo...

A partir daqui retirados de Mensageira das Violetas

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!

Não vejo nada, tudo é morto e vago…
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho…

Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!…

E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!

*

Versos! Versos! Sei lá o que são versos…
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz. cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma.

Versos!… Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!… Sei eu lá também que são…
Sei lá! Sei lá!… Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez…

Versos! Versos! Sei lá o que são versos..
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!…

*

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

*

Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos bardos à garganta
Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma da charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
dize para onde eu vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra...
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

Six

as pessoas não precisam de relacionamentos para viver, e sim para mostra-los.

devaneios de b.

e se algum cientista maluco um dia inventar o antibiotico pro amor?

autor desconhecido

Vejo de cima os reflexos divididos em cacos assimétricos do espelho que deixei cair de minhas mãos, eu era superfície plana, linear e tinha forma. Eu era só um. Só, um eu era. Primeira pessoa do singular, e letra legível – de tanto ser, hoje tantos sou. Durante a queda em qual o espelho caía, eu me via cada vez mais em menor proporção, durante a queda eu era letra tremida. E tremida em mesma escala do chão que treme no ponto final da queda – abalo sísmico – me deixou em ruínas, fragmentou-me, eu estirado no chão em cacos, em alto relevo, refletia todos os lados, um caco refletia o outro e o que este refletia. Eu era o teto, o chão, as paredes, e a porta, o que vai e o que não vai além da porta – “sou mais aquilo que em mim não é”. Desde então eu sou dois, sou três, quatro... perco a conta de quanto somos. Diante de tantos eus espelhados e espalhados pelo chão, não sou eu o mais apto a juntar tantos mims. Não deixarei que nos juntemos como gotas de mercúrio, gosto da condição atual em que me desencontro – “por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feito.”

quarta-feira, 18 de março de 2009

Assis, Machado de

CAPÍTULO 71 - O Senão do Livro

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor.

Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo é o ar que respirais, amadas folhas. O sol que vos alumia, com ser de toda gente, é um sol opaco e reles, de cemitério e carnaval.

Trecho à cima retirado de Memórias Postumas de Brás Cubas

*

Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-me a boca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitu, fechava-me os lábios.

*

Um dia, - era uma sexta-feira - não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair.

Trechos à cima retirados do livro Dom Casmurro

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Bresson, Robert

Voz e rosto.
Eles se formaram juntos e adquiriram o hábito um do outro.

*

O verdadeiro é inimitável, o falso imutável.

*

Sem nada mudar, que tudo seja diferente.

*

Que a causa siga o efeito e não o acompanhe nem o antecipe.

*

Condenados são os filmes cujos silêncios e lentidões se confundem com os silêncios e lentidões da sala.

Retirados do livro Notas sobre o Cinematógrafo

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Goethe, Johann Wolfgang

Tenho tanta coisa e a lembrança dela tudo devora! Eu tenho tanta coisa e sem ela tudo se reduz a nada.

*

digo para comigo: "Eis o que tu és nesta casa! Tudo em todos.* Os teus amigos têm consideração por ti! Muitas vezes lhes dás alerias e o teu coração supõe que não poderias existir sem eles. Todavia, se tu partisses, se te afastasses dessa roda, sentiriam eles o vácuo que a tua ausência causaria ao seu destino? E por quanto tempo? Ah, o homem é tão efêmero que, mesmo ali onde tem certeza da sua existência, onde pode deixar a única e verdadeira impressão da sua presença, ou seja, na memória, na alma dos seus amigos, mesmo ali deve apagar-se e desaparecer, e isto tão logo!"

*parafrase da Primeira Epístola aos Coríntios (nota do Marcelo Backes, tradutor da edição L&PM pocket)

*

Por vezes sinto vontade de rasgar-me o peito, de partir-me o crânio, ao ver de quão pouco somos capazes uns em relação aos outros. Ah, o amor, a alegria, o ardor, as delícias que não alcanço por mim, não mas dará outro, e, com o coração a transbordar de venturas, não poderia tornar feliz a este mesmo outro ao vê-lo frio e sem forças diante de mim.

Até aqui retirados do livro Os sofrimentos do Jovem Wether

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Nesse mundo há muitas palavras e poucos ecos.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Borges, Jorge Luis (parafraseando)

Retirados de Outras Inquisições

Um livro, qualquer livro, é para nós um objeto sagrado: já Cervantes, que talvez não escutasse tudo que lhe diziam as pessoas*, lia até "os papéis rasgados nas ruas".

*é relevante colocar que no trecho Borges está comparando a fala à escrita, e enfatiza que Cervantes é tão adepto a esta que nega aquela.

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Também me lembro com certo estupor de uma assembléia convocada apenas para confundir o anti-semitismo. Há várias razões para que eu não seja anti-semita; a principal é esta: a diferença entre judeus e não-judeus me parece, em geral, insignificante; às vezes, ilusória ou imperceptível. Ninguém, naquele dia, quis compartilhar minha opinião; todos juraram que um judeu-alemão difere enormemente de um alemão. Em vão lembrei que é exatamente isso o que diz Hitler; em vão insinuei que uma assembléia contra o racismo não deve tolerar a doutrinha de uma Raça Eleita; em vão invoquei a sábia declaração de Mark Twain: "Eu não pergunto de que raça é um homem; basta que seja um ser humano; ninguém pode ser nada pior" (The Man that Corrupted Hadleyburg, p.204).

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A biografia de Bernard Shaw por Frank Harris contém uma carta admirável de Shaw, de que transcrevo essas palavras: "Compreendo tudo e a todos e sou nada e sou ninguém".

Bloy, Léon

Não há na Terra ser humano algum capaz de declarar quem é, com certeza. Ninguém sabe o que veio fazr neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas idéias, nem qual é o seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro da Luz... A história é um imenso texto litúrgico em que os iotas e os pontos não valem menos do que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de uns e outros é indeterminável e está profundamente oculta.

Parafraseado por Borges no livro Outras Inquisições

Mallarmé

O mundo existe para chegar a um livro.

Parafraseado por Borges no livro Outras Inquisições

sábado, 24 de janeiro de 2009

Lispector, Clarice

às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. é que ao escrever eu me dou as mais inesperadas surpresas. é na hora de escrever que muitas vezes fico consciente das coisas, das quais, sendo incosciente, eu antes não sabia de nada

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Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?

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E agora só queria ter o que tivesse sido e não fui.

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Não sei quem acusar, mas deve haver um réu.

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- Eu vou ter tanta saudade de mim quado morrer.

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- Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar.

*

Você compreende, não é, mamãe, que eu não posso gostar de você a vida inteira.

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Ter nascido me estragou a saúde.

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Há um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos, e a isto chamamos amor.

*

...Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar...

*

Porque tudo na vida começa com um 'sim'. Uma molécula disse 'sim' pra outra e a vida nasceu...Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.

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Se me descuido, morro.

*

Estou triste. Um mal-estar que vem do êxtase não caber na vida dos dias.

*

Existir é tão completamente fora do comum que, se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama "eu existo", a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista

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Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente - como em dores de parto - e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim.

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Tenho saudade do que poderia ter sido e não fui.

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Perder-se é ir achando sem saber o que fazer com o que se for achando.

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A partir daqui todos retirados de A Paixão Segundo G.H.

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Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em "pureza", nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.

*

Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monotonia de meu amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados. O que era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto fio d'água correndo, e a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, e o silêncio no vôo dos mosquistos. E o presente disponível. E a minha libertação lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa. Eu não sabia ver que aquilo era amor delicado. E me parecia o tédio. Era na verdade o tédio.

*

Tudo iria acabar, quando acabasse o que chamávamos de intervalo de amor; e porque ia acabar, pesava trêmulo com o próprio peso de seu fim já em si. Lembro-me de tudo isso como através de um tremor de lágrimas.

*

A balança tinha agora um prato único. Nesse prato estava a minha profunda recusa de baratas. Mas agora "recusa de baratas" eram meras palavras, e eu também sabia que na hora de minha morte eu também não seria traduzível por palavra.

*

E uma desilusão. Mas desilução de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele esta muito feliz porque finalmente foi desiludido.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Bukowski, Charles

O trecho a seguir foi retirado do livro O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

Às vezes, me sinto como se estivéssemos todos presos num filme. Sabemos nossas falas, onde caminhar, como atuar, só que não há uma câmera. No entanto, não conseguimos sair do filme. E é um filme ruim.


Os trechos a seguir foram retirados do livro Misto Quente


Eu gostava do lugar, tinha grandes árvores que davam sombra, e desde que algumas pessoas haviam me dito que eu era feio, sempre preferia a sombra ao sol, a escuridão à luz.

*

Naquela tarde depois da escola eu caminhei apressado pra casa, logo que a aula terminou, sem esperar por David. Não queria vê-lo apanhar novamente dos nossos colegas ou da sua mãe. Não queria ouvir o seu triste violino. Mas no dia seguinte, na hora do almoço, quando ele se sentou comigo, comi suas batatas fritas.

*

- Joe! Joe! Cadê você, Joe?
Joe não ia vir. Não valia a pena confiar em nenhum outro ser humano. O que quer que fosse preciso para estabelecer essa confiança, não estava presente na humanidade.

*

[se referindo aos escritores]
Pra mim, esses homens que haviam entrado em minha vida, todos vindos de lugar nenhum, eram minha única chance. Eram as únicas vozes que falavam comigo.

*

Lia meus livros à noite, desse jeito, debaixo das cobertas com a lâmpada superaquecida. Lia todas aquelas belas frases enquanto me sufucava. Era mágico.

*

Eu não tinha interesses. Eu não tinha interesses por nada. Não fazia a mínima idéia de como iria escapar. Os outros, ao menos, tinham algum gosto pela vida. Pareciam entender algo queme era inacessível. Talvez eu fosse retardado. Era possível. Freqüentemente me sentia inferior. Queria apenas encontrar um jeito de me afastar de todo mundo. Mas não havia lugar para ir. Suicídio? Jesus Cristo, apenas mais trabalho. Sentia que o ideal era poder dormir por uns cinco anos, mas isso eles não permitiriam.

*

- Então você não quer estudar? O que você sabe fazer? No que você é bom? Do que você é capaz? Gastei milhares de dólares na sua criação, para alimentá-lo e vestí-lo! Vamos supor que eu ponha você no olho da rua? Então, o que você fará?
- Caçarei borboletas.

*

O cachorro caminhou até o pedaço de sanduíche, aproximou seu nariz e recuou. Dessa vez não olhou para trás. Disparou pela rua.
Já não havia dúvidas de por que eu tinha me sentido deprimido durante toda a minha vida. Não estava recebendo a alimentação adequada.

*

O que eu queria era uma caverna no Colorado com um estoque de comida e bebida para três anos. Limparia minha bunda com areia. Qualquer coisa, qualquer coisa que me salvasse do afogamento desta existência trivial, covarde e estúpida.

Os trechos a seguir foram retirados do livro O amor é um cão dos diabos

vou embora, ela disse. eu te amo mas você é
louco, um caso perdido.
ela apanhou a bolsa e bateu a porta.
provavelmente é algum distúrbio profundamente enraizado na infância
que me faz assim vulnerável, pensei.
então sai de casa e fui até o meu fusca.
dirigi para o norte pela western com o rédio ligado.
havia putas caminhando pra lá e pra cá
dos dois lados da rua e Madge parecia
mais perdida que
qualquer uma delas.

*

mulheres nao sabem como amar,
ela me disse.
você sabe como amar
mas mulheres só querem
parasitar.
hahaha, eu ri.
por isso não se preocupe por ter terminado
com Susan
porque apenas irá parasitar
outro homem.
falamos um pouco mais
então eu me despedi
desliguei o telefone
fui ao banheiro
e mandei uma boa merda de cerveja
e basicamente pensando, bem,
continuo vivo
e tenho a capacidade de expelir
sobras do meu corpo
e poemas.
enquanto isso acontecer
serei capaz de lidar com
traição
solidão
unhas encravadas
gonorréia
e boletim econômico do
caderno de finanças.
com isso
me levantei
me limpei
dei a descarga
e então pensei:
é verdade:
eu sei como
amar.
ergui minhas calças e caminhei
para a outra peça.

*

um outro qualquer as terá
e eu caminharei por aí
em meu short surrado
fumando cigarros demais
tentando extrair algum
drama
de nehum progresso
de fato.

*

tenho que pensar na morte mais e mais
senilidade
muletas
poltronas
escrevendo poesia púrpura com a
caneta pingando
quando mocinhas com bocas
de piranha
corpos como limoeiros
corpos como nuvens
corpos como flashes de luz
pararem de bater à minha porta.
não se preocupe com rejeições, parceiro.
fumei 25 cigarros esta noite
e você sabe sobre a cerveja.
o telefone tocou apenas uma vez:
era engano.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Dostoievski, Fiodor

e agora se abriram mil torneiras em minha cabeça e tenho de verter meu coração em uma torrente de palavras, se não quero que me afoguem.

*

Eu sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.

*

Tenho quarenta anos atualmente. Ora, quarenta anos, é toda a vida, é a profudna velhiche. É inconveniente, é imoral, é vil viver além dos quarenta. Quem vive depois dos quarenta anos? Respondei sinceramente, honestamente! Vou dizer-vos, sim, eu: os imbecis, os patifes, esses vivem mais de quarenta anos. Eu o proclamarei à face de todos os velhos, de todos os respeitáveis velhos, de todos os velhos de cabelos cor de prata e perfumados! Eu o proclamarei à face do universo inteiro. Tenho o direito de falar assim, porque eu, eu viverei até os sessenta anos! Até os setenta anos! Até os oitenta anos!

*

Ah! Senhores! É possível que eu me considere extremamente inteligente pela única razão de que, em toda a minha vida, nunca pude começar nem acabar fosse o que fosse. Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como nós todos. Mas que fazer, senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água em uma peneira?

*

Se me disserdes que o caos, as trevas, as malições, que tudo isso pode também ser calculado de antemão, se bem que a simples possibilidade desse cálculo irá paralisar o impulso do homem e que a razão triunfará assim uma vez mais, então eu vos confessarei que o homem só tera um meio de fazer o que lhe apraz, que é perder a razão e tornar-se completamente louco.

*

Mas, seja como for, "duas vezes dois igual a quatro" é uma coisa bem insuportável. "Duas vezes dois igual a quatro", na minha opinião, respira impudência. "Duas vezes dois igual a quatro" nos desfitura insolentemente. De mãos nos quadris, ele se atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que "duas vezes dois igual a quatro" seja uma coisa excelente, mas, se é preciso louvar tudo, eu vos direi que "duas vezes dois igual a cinco" é também às vezes uma coisinha muito encantadora.

Retirados do livro Noites Brancas e Outras Histórias