domingo, 15 de agosto de 2010

Nejar, Carlos

O bafo de estar vivo,
Corporal.
Mas quem sabe
se vivo já não sou,
linha férra
sem fim.

A natureza é transição
de som.
A natureza,
fragmento de um fragmento,
onde me deito.

Eu e tu, meu irmão,
cheiramos forte
o ar de estar conscientes.

*

CLARIDADE

O barulho de existir;
um cão
dentro de mim.

Atravesso
como a um pático
o barulho de existir.

*

Até quando
o morno soluço, apele
da execução e medo?
Humanos,
depois nos habituamos
com as escamas e os anos.

*

COISAS, COISAS

A despeito do amor,
as coisas todas
se fizeram ao mar.
Não quis retê-las.
Não conheci regresso.
Coisas, coisas
vos amei por excesso.
E o universo
me foi alto preço.

Todos os bens
vendidos em leilão.
O ar vendido.
Os rios.
As estações.

Comprei arrobas de chuva
ao meu pomar.
Trouxe neblina
de arrasto
pela morte.
Comprei a noite
e dei o menor lance
ao horizonte.

Coisas, coisas,
vos amei por excesso.

Retirados de Árvore do Mundo, editora Nova Aguilar s.a. mec.

Calvino, Italo

Os trechos abaixo foram retirados do livro As cidades invisíveis, da editora Companhia das Letras, tradução de Diogo Mainardi.

- Eu não tenho desejos nem medos - declarou o Khan -, e meus sonhos são compostos pela mente e pelo acaso.
- As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nenhum nem outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas.
- Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge.


*

- Os simbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer.
Compreendi que devia me liberar das imagens que até aí haviam anunciado as coisas que procurava: só então seria capaz de entender a linguagem de Ipásia.
(...)
Sei que não devo descer até o porto mas subir o pináculo mais elevado da cidadela e aguardar a passagem de um navio lá em cima. Algum dia ele passará? Não existe linguagem sem engano.

O trecho abaixo foi retirado do livro O Visconde Partido

às vezes a gente se imagina incompleto e é apenas jovem.

Woolf, Virginia

A partir daqui retirado de Orlando, ediora Nova Fronteira, tradução de Cecília Meireles.

Estava descrevendo, como todos os poetas jovens sempre descrevem, a natureza, e, para determinar precisamente um tom de verde, olhou (e nisso mostrou mais audácia que muitos) para a própria coisa, que era um loureiro por baixo da janela. Depois disso, naturalmente, não pôde mais escrever. Uma coisa é o verde na natureza; outra coisa, na literatura. Entre a natureza e as letras parece haver uma natural antipatia; basta juntá-las para que se estraçalhem. O tom de verde que Orlando agora via estragou-lhe a rima, quebrou-lhe o metro.

A partir daqui retirado do livro Passeio ao Farol

Nunca ninguém pareceu tão triste. Amarga e escura, a meio caminho das trevas, sob o feixe de luz que fugia do sol para encerrar-se nas profundezas, talvez uma lágrima teha formado; e uma lágrima cujas águas agitaram-se de um lado para o outro e receberam-na, depois acalmaram-se. Nunca alguém pareceu tão triste.

Duras, Marguerite

A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria haver alguém, mas não é verdade não havia ninguém.

*

Nas histórias dos meus livros que se referem à minha infância, não sei mais o que evitei dizer, o que disse, acho que falei sobre o amor que dedicamos à nossa mãe, mas não sei se falei do ódio também e do amor que havia entre todos nós, e do ódio também, terrível, nessa história comum de ruína e de morte que era a história daquela família, a história do amor como a história do ódio e que foge ainda à minha compreensão, é ainda inacessível para mim, escondida nas profundezas da minha carne, cega como um recém-nascido de um dia. É o limiar onde começa o silêncio. O que acontece é justamente o silêncio, esse lento trabalho de toda a minha vida. Ainda estou lá, na frente daquelas crianças possessas, à mesma distância do mistério. Jamais escrevi, acreditando escrever, jamais amei, acreditando amar, jamais fiz coisa alguma que não fosse esperar diante da porta fechada.

*

Pergunto se é comum ficar triste como estamos. Ele responde que é porque fizemos amor durante o dia, no auge do calor. Diz que é sempre terrível. Diz que passará com a vinda da noite, assim que ela chega. Digo que não é só por ser dia, que está enganado, que sinto uma tristeza que já esperava e que vem só de mim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza nas minhas fotografias da infância. Que hoje essa tristeza, sentindo-a como a mesma que sempre senti, quase pode ter meu nome, tanto ela se parece comigo. Digo que hoje essa tristeza é um bem-estar de ter afinal caído na infelicidade que minha mãe anuncia há tanto tempo, quando ela uiva no deserto de sua vida.

*

[sobre a morte do irmão]
Ninguém via com clareza, somente eu. E a partir do momento em que tive acesso a esse conhecimento, tão simples, quando me certifiquei de que o corpo de meu irmãozinho era também o meu, eu devia morrer. E morri. Meu irmãozinho levou-me consigo, chamou-me para si e morri.

Retirados do livro O Amante, da editora rioGráfica, tradução de Aulide Soares Rodrigues

sábado, 14 de agosto de 2010

Andrade, Carlos Drummond de

A Verdade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

A partir daqui retirados de A Rosa do Povo

*

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedânio da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

*

Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe
subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música
feita de depurações e depurações, a delicada modelagem
de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais
que um arebesco, apenas um arebesco
abraça as coisas, sem reduzi-las.

*

Falam por mim os abandonados de justiça, os simples de coração,
os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados,
os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.