segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Faraco, Sérgio

A mensão dos livros o perturbara, talvez confudisse advogados com cobradores de impostos, fiscais, guardas-aduaneiros. Tranqüilizei-o, não, eu não era nada disso, carregava livros porque gostava deles e gostava tanto que de vez em quando escrevia algum.
Apertou os olhos, interessado.
- É preciso uma cabeça e tanto. Aquele mundaréu de letrinham uma agarrada na outra...

*

Estação de Santa Maria, encruzilhada de trens, ah, quisera eu que em Santa Maria pudesse encontrar alguém que também estivesse à procura de alguém, e se ninguém me fosse dado encontrar, que ao menos me encontrasse a mim mesmo, perdido que andava na pradaria sem carril da minha alma atormentada.

*

Vendo-a assim, desenvolta, eu sentia que algo vicejava forte em mim, uma nova energia, uma vontade de viver, de conviver, compartilhar, e tinha certeza, uma certeza doce, cálida e total, de que agora ela pensava como eu, que valia a pena tentar ainda uma vez, que valia a pena dançar um tango em Porto Alegre. Que importava se era ou não era amor? Sempre, mas sempre mesmo, seria uma vitória.

Retirados do livro Dançar Tango em Porto Alegre - e outros contos

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Rossner, Judith

- Como se sente?
- Não sei.
- Acha que devo chamar o médico de novo?
- Não. Não estou doente.
- O que aconteceu?
Tudo.
- Nada.

retirado do livro De Bar em Bar

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Allen, Woody

Parecia-lhe que o mundo estava dividido em duas espécies de pessoas: as boas e as más. As primeiras dormiam melhor, mas as últimas se divertiam muito mais durante o dia.

*

Needleman não era fácil de compreender. Sua reticência era confundida com frieza, mas, no fundo, tinha um grande coração.

até aqui retirados do livro Que Loucura!

*

A vida não imita a arte. Imita um programa ruim de televisão.

*

Love is too weak a word for what I feel - I luuurve you, you know, I loave you, I luff you - two F's

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Neruda, Pablo

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vemos ali onde não espera nada
e achamos tudo o que está esperando.

*

Mentem os que disseram que eu perdi a lua,
os que profetizaram o meu porvir de areia,
asseveraram tantas coisas com línguas frias:
quiseram proibir a flor do universo.

"Já não cantará mais o âmbar insurgente
da sereia, não tem senão povo."
E mastigavam seus incessantes papéis
patrocinando para minha guitarra o esquecimento.

Eu lhe lancei aos olhos as lanças deslumbrantes
de nosso amor cravando o teu coração e o meu,
eu reclamei o jardim que deixavam tuas pegadas,

eu me perdi de noite sem luz sob tuas pálpebras
e quando me envolveu a claridade
nasci de novo, dona da minha própria treva.

*

Volta-se a mim como uma casa velha
com pregos e ranhuras, e assim
que alguém cansado de si mesmo,
como de um traje cheio de buracos,
tenta andar despido porque chove,
quer o homem molhar-se na água pura,
no vento elementar, e não consegue
senão voltar ao poço de si mesmo(...).

*

(...)nada, não há senão seres sem objeto,
palavras sem destino
que não vão além de ti e de mim,
nem aquém do escritório
- estamos demasiados ocupados -
nos chamam pelo telefone
com urgência
para notificar-nos que ficou proibido
ser feliz.

*

Se cada dia cai
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

*

Perdão se pelos meus olhos não chegou
mais claridade que a espuma marinha,
perdão porque meu espaço
se estende sem amparo
e não termina:
- monótono é meu canto,
minha palavra é um pássaro sombrio,
fauna de pedra e mar, o desconsolo
de um planeta invernal, incorruptível.
Perdão por esta sucessão de água,
da rocha, a espuma, o delírio da maré
- assim é minha solidão -
saltos bruscos de sal contra os muros
de meu ser secreto, de tal maneira
que eu sou uma parte do inverno,
da mesma extensão que se repete
de sino em sino em tantas ondas
e de um silêncio como cabeleira,
silêncio de alga, canto submergido.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Prochnow, Herbert

Cidade é um lugar onde as pessoas ficam sozinhas juntas.

Pierce, Charles*

Prefiro ser negro a ser gay porque, quando se é negro você não tem que contar a sua mãe.

*ator transformista

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Baszczyn, Eduardo

carrego coisas pesadas e quase não mais flutuo. há tempos, navego sem encontrar portos pelo caminho. lugares onde se possa parar. descarregar as cargas amontoadas. atirar o que é sobra ao chão do cais. navego enquanto posso, sem conseguir me livrar da bagagem. das pedras dentro das malas. sabendo que a mudança foi com a embarcação e não com o mar. navego, sabendo que afundar é questão de tempo.

*

às vezes, tenho vontade que o mundo se transformasse em uma polaróide ao contrário. tudo em volta sumindo aos poucos. em segundos, apenas um borrão antes do nada

*

e, então, não há mais lugares para pousos. condenado a bater as asas para sempre, morro porque, agora, só se cultivam espinhos em todos os jardins

*

que você deveria saber que eu acabei apenas desenhando esses dois riscos nos meus punhos, sem coragem de pesar a mão sobre os meus braços e fazer cortes mais profundos. que você deveria saber que esses olhos vermelhos são por chorar, escondida no banheiro, sufocando os soluços com a mão, sentada sobre o chão gelado, evitando o espelho pra não ver minha cara com maquiagem borrada e lápis preto escorrido pelo rosto, como lágrima negra até o queixo. que você deveria saber que mesmo assim, sem forças, eu joguei aquelas flores mortas do vaso e saí pra comprar um dúzia de novas, brancas. e que, na volta, eu arranquei os sapatos e acelerei descalça querendo jogar o carro contra o poste e contra o muro e contra um monte de coisas que eu vi pelo caminho. que você deveria saber que eu passei a tarde toda gritando com a cabeça enfiada no travesseiro fazendo a voz sumir aos poucos. e que eu quebrei um copo na parede da sala, manchando aquele bege, cor de nada, com o vermelho do resto de vinho. que você deveria saber que eu saí no meio da chuva, pisando poças e parando sob as goteiras e pedindo pra que um raio, apenas um daqueles todos, me acertasse em cheio. eu achei que você deveria saber que eu achei que você deveria saber um monte de coisas, antes de me deixar. que eu mandei trocar as fechaduras da porta enquanto você dormia. achei que você deveria saber que com essa chave você não vai embora. que ela não serve pra mais nada. eu achei que deveria saber que agora você só sai daqui se for por essa janela. pulando, assim, como eu.

*

eu me arrebentei, assim, porque o nó era fraco. frouxo. mal dado. eu afundei, em segundos, porque no meu casco havia um buraco milimétrico por onde o mar entrou, aos poucos. inteiro. eu caí com o primeiro vento porque não havia tijolos. eu era construção mal feita. erguida na pressa. madeira com pregos mal batidos. fachada. eu derreti ao sol porque era de plástico. sumi no sopro porque era pó. eu me quebrei na primeira queda porque, por dentro, não havia mais nada. eu me sentia forte, sem saber que já era oco.

*

ele me fez atravessar o longo corredor, mas não escreveu que no final haveria uma porta para que eu fugisse. ele me fez escancarar a boca até o fim, mas esqueceu de me dar o grito.

*

(...)minha vida já era fruto bicado por passarinho. maçã cheia de bichos caída sobre a grama. ainda vivo, mas apodrecido. no meio do jardim, o buraco giganteco. é dentro dele que eu espero. me disseram que seria o único jeito. voltar a ser semente e começar tudo outra vez.

*

mas um dia, você pode ter certeza, o desequilíbrio irá atrapalhar essa sua destreza. interromper suas acrobacias. seus truques. manobras. um dia, esse seu número chegará ao fim, de repente. espetáculo encerrado, de uma hora para outra, pelas bolas coloridas espalhadas pelo chão. um dia, enquanto estiver recolhendo uma por uma, entre tantas vaias, você irá se arrepender. jurar nunca mais fazer malabarismos por tanto tempo com os sentimentos de quem já o aplaudiu.

*

se você não percebeu que os dois lados se juntavam, aos poucos, todos os dias, por que saiu antes? por que me disse que este era o nosso refúgio, sabendo que ele se tranformava a cada minuto? sabendo que um dia ele se fecharia, por completo. armadilha. por que prometeu ficar por perto se, no final, acabou me deixando ser engolido? sozinho. morto pelo que era flor e virou planta carnívora.

*

é o seu medo? por que, então, viver no meio se você pode escolher entre o céu e o inferno?

*


Talvez um dia eu seja uma pessoa mais equilibrada. Dessas que não se abalam tanto com os problemas. Que sabem administrar com inteligência a maioria das situações. Mas, por enquanto, confesso que não consigo. Basta uma coisa dar errado para estragar todas as outras. Um desequilíbrio literal. Imagino meu humor como uma pilha de latas em um corredor de supermercado. Estão todas lá: umas em cima das outras. Organizadas. Alinhadas. Aí vem uma criança teimosa e tira uma das latas de baixo. A do meio! E, em dois segundos, está tudo no chão. Era impossível que continuassem de pé sem aquela lata. Ando meio triste. Uma criança teimosa passou por aqui um dia desses e levou o que queria.
Tirou uma lata e foi embora. Sei que vou ficar bem. No fim, as coisas sempre se ajeitam. Mas dá um trabalho organizar tudo de novo! Ter de pegar lata por lata e empilhar outra vez... Uma a uma. Bem devagar. Até achar o tal do equilíbrio.

http://coisasdagaveta.blogspot.com/

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Amber Pacific

So why should I take your hand, when you can't promise happy endings?

da música Thoughts Before Me

terça-feira, 24 de junho de 2008

Burgess, Anthony

- Mas pelo menos somos obrigados a reconhecer que o Estado, tal como existe hoje no Ocidente livre, não evolui na direção imaginada por Orwell - temos liberdade para ler o quisermos, admirar a pornografia expostas nas ruas, comprar todo tipo de lixo plástico, fazer amor sem qualquer impedimento oficial. Vivemos chamando por mais liberdade e acabamos quase sempre por obtê-la. E, mesmo assim, o Estado sempre é visto como um monstro, especialmente pelos jovens.
- Ah, os jovens!

Retirados do livro 1985

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Gullar, Ferreira

A vida está
dentro da vida
em si mesma circunscrita
sem saída.

Nenhum riso
nem soluço
rompe
a barreira de barulhos.

A vasão
é para o nada.
Por conseguinte
não vasa.

*

(...)"não se preocupe pois tudo vai acabar mal"
dizia rindo,
"além do mais essa música é bonita pra caralho...
___________________________ou não!"
(...)

*

Gravura

Longe de mim
para além dos edifícios de Botafogo
___________________e da Tijuca
____________para além do Méier, de Madureira
_____________________ de Bangu
vencida a última casa na periferia do Rio
_____________________longe
___________para além dos espantosos rochedos
___________da serra das Araras
para além dos vales e campos cultivados
___________municípios e cidades
longe
longe de mim
___________no coração de São Paulo
___________dorme você a esta hora
___________(quatro e quinze da manhã)

___________com seus negros cabelos.

*

Aprendizado

Do mesmo modo que te abriste à alegria
____abre-te agora ao sofrimento
____que é fruto dela
____e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
____que da alegria foste
__________________ao fundo
____e te perdeste nela
__________________e te achaste
__________________nessa perda
_____deixa que a dor se exerça agora
_____sem mentiras
_____nem desculpas
_______________e em tua carne vaporize
_______________toda ilusão

_____que a vida só consome
_____o que a alimenta.

Retirados do livro Barulhos

*

Não te aconselho o amor. O amor
é fácil e triste. Não se ama
no amor, senão
o seu próximo findar.
Eis o que somos: o nosso
tédio de ser.

(...)

Saber-se
fonte única de si
alucina.
______Sublime, pois, seria
suicidar-nos:
trairmos a nossa morte
para num sol que jamais somos
nos consumirmos.

*

Fui sempre o que mastigou a sua língua e a engoliu. O que apagou as manhãs e, à noite, os anúncios luminosos e, no verso, a música, para que apenas a sua carne, sangrenta pisada suja - a sua pobre carne o impusesse ao orgulho dos homens. Fui aquele que preferiu a piedade ao amor, preferiu o ódio ao amor, o amor ao amor. O que se disse: se não é da carne brilhar, qualquer cintilação sua seria fárua; dela é só apodrecimento e o cansaço.

*

Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso
duplo espelho - o precário no precário
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.

*

Quem fala em flor não diz tudo
Quem me fala em dor diz demais
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Um bolero

depois de ter vivido vinte desenganos, qual a diferença de viver mais um?

García Márquez, Gabriel

Ele está no bar. O dono do bar, que o conhece muito bem, pergunta "E para onde você vai?". E ele responde: "Sei lá. Vou à merda."

Retirado do livro sobre as aulas na Oficina de Roteiro da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Auster, Paul

Maridos desaparecem todos os dias, diz ele, e, a menos que haja indício de crime, a polícia não pode fazer nada. Perto do desespero, dando por fim vazão à angústia e à tristeza que foram se acumulando dentro dela nos últimos dias, Eva diz ao sargento que ele é um filho-da-puta sem coração e desliga.

*

(...)seus modos foram reservados e cavalheirescos, até um pouco distantes. Um homem mais perdido do que agressivo, lembrava disso, com um inconfundível toque de tristeza pairando sobre si.

*

Sentia-me extremamente vulnerável, como se o próprio ar fosse uma ameaça, como se uma rajada inesperada de vento pudesse soprar através de mim e deixar meu corpo espalhado em pedaços pelo chão.

retirados do livro Noite do Oráculo

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Chacal*

Entre cão e pulga, mais hora menos hora, sempre nasce uma relação legal. Um chupa o sangue do outro e os dois latem para a Lua. É nessas horas que entendem que não adianta a preocupação, que ambos têm todos os elementos que identifiquem a melancia com a melancolia.

*

Quero que me enterrem sobre cinco palmos de terra e me deixam lá tirando a soneca definitiva. Sei que sentirei algumas cocégas quando os vermes vierem me mastigar. Espero estar triste o suficiente para não ter um acesso de riso e atrasar minha transmutação. Quero ir com elegância do homem ao húmus.

*

Era uma tribo de renegados aquela. Drop outs, retirantes, traficantes da luxúria, da miséria da angústia e do ódio. Só a aversão os ligava. Aversão à justiça, aversão à vida, aversão à felicidade. Eles comiam o pão que o diabo amassou e bebiam sangue e soda cáustica. Viviam com bem pouco é verdade, mas viviam pouco. Nenhum deles jamais atingiu a serenidade. São ociosos o tempo todo, embora o tempo seja pouco. Quem jamais os viu sorrindo dirá que são infelizes. Eles não desprezam a bondade porque não a conhecem. Eles degeneram no ócio. Eles apenas fumam ópio e deliram. renegados de todos os códigos, de todos os ritos, eles são a fratura exposta da carne de onde vieram. Eles não dão bom-dia. Quando muito, um até logo.
(...)
Era um bando de taciturnos. Nem ternos, nem turvos. Taciturnos. tratavam vez em quanto contato com a vulgaridade. Então se desfaziam em dramas, se desmanchavam em incertezas. Para parar por aí, pensavam, pensavam, pensavam. Poucos dos que passavam, passavam pensando se iam voltar. Desses, poucos voltavam. Os que voltavam, voltavam pensando que iam voltar. Os outros não voltavam. Pensavam.
(...)
Eles normalmente têm falta de ar quando vêem os telejornais mostrarem o que vai pelo mundo. Eles não entendem. Eles são tristes.

*

LINHAS TRAÇOS

quadros abstratos
figuras impressionistas
quero pegar pesado
quero ser artista

óleo sobre tela
meu coração é dela
spray na parede
mata minha sede

claro escuro
cores caras
linhas traços
noites claras

verde azul e preto
amarelo encarnado
entre formas brutais
e o olho desgraçado.

*

Talvez o Rock seja aquele momento em que o homem se encontra com o homem e eentende que se ele não pode ser o outro, ele está absolutamente só e só lhe resta chorar. E desse choro nasce a Felicidade. A Felicidade de poder cantar e dançar com o outro que lhe completa o passo, que lhe rebate a luz, que lhe introduz nos Mistérios, que lhe permite entender que ele só é ele com o outro, com o além dele, com o todo.

*

Você treme. Você acha que é o frio. Tudo bem. Seus dentes começam a ficar amarelados. Deve ser o cigarro. Tudo bem. Você está no ônibus e vê pequenos delinquüentes roubarem uma bolsa. Antes a bolsa do que a vida. Tudo bem. Os pivetes têm pêlos saindo do nariz. Você acha que é coisa da idade. Tudo bem. Você está na rua e crianças te empurram balas, drops, chicletes. Você fecha o vidro e liga o rádio. Tudo bem. Você vai para casa e ela está fria. Você acha que é agosto e é inverno. Tudo bem. Você liga a TV e vê um mundo perplexo entre anúncios caóticos. Você faz as contas e vê quanto pode gastar logo ali. Você acha que dá. Tudo bem. Você olha para o céu e começa a chover. Você não tem guarda-chuva. Você abre um jornal para dar uma revista. Algumas pessoas usam estrelas nos ombros. Outras comem ratos. Outras acertam na loto. Outras falam de moratória. Você acha tudo muito complexo e esmaga uma espécie de fungo que lhe nasce entre os dedos do pé. Você relaciona isso com a umidade. Tudo bem. Você tenta dormir. O sono não vem. Você acha que porque é difícil dormir com um barulho desses. Tudo bem. Você pensa em ligar para alguém. Seu telefone está desligado. Menos uma conta. Tudo bem. Você toma uma, fma outro, tosse uns barulhos esquisitos lhe saindo pelos brônquios. Na primavera você se recupera. Tudo bem. Você sai na rua e um fusca da guarda-civil o interpe-la bruscamente sobre sua procedência. Você se assusta mas acha que é a lei. Tudo bem. Você esbarra com milhares de pessoas na rua que lhe pedem fogo. Você começa a pedir também. Não vai ser um cigarro que vai tirar seu humor médio. Tudo bem. Suas orelhas parecem que crescem. Você acha que é picada de inseto. Você sabe que os mosquistos são mais comuns no verão. Suas orelhas crescem a olhos vistos. Você se acustuma. Tudo bem. Você desliga o rádio e vai ao hipódromo jogar naquela barbada do quinto páreo. Seu cavalo tropeça, quebra a pata e é sacrificado. Você acha que foi melhor pra ele e que o animal lhe fez perder o último barão. Outros virão. Podes crer. Sua barriga começa a inchar. Você não comeu nada hoje. Deve ser falta de exercício. Podes crer. Você vai ao cinema e o filme não lhe diz nada. Você acha que é o sono. Podes crer. Você sai na rua e os carros quase lhe abotoam. Você acha que é o trânsito aliado a sua desatenção. Podes crer. Você vai jogar bola e não tem vaga pra você. Você acha que é porque aquela não é a sua turma. Podes crer. Você vai à praia, pega uma onda e quase se afoga. Você acha que seu fôlego já foi melhor. Podes crer. Você pega um livro. ELe é igual àquele outro que é igual àquele outro. Você lê o livro outra vez. Podes crer. Você vai ao teatro e acha um barato. Pena que não teve peça. Um ator entrou em pane. Podes crer. Você sente uma vontade irresistível de comer queijo. Você sempre gostou de queijo. Podes crer. Você vai a uma festa e não dança com ninguém. Você acha que é agosto. Podes crer. Você pára numa vitrine e uma roupa lhe chama de tesouro. Você acha que é alucinação de ótica. É isso aí. Você entra no metrô e não vê luz no olho de ninguém. Você põe uns óculos escuros e abre um gibi vagabundo. Você gosta do Ken parker. É isso aí. Você repara que suas unhas começam a ficar curvas e afiladas. Você acha que é o excesso de tabaco e as noites viradas. É isso aí. Você lê nas folhas, notícias de secas e enchentes, corrupção e crime. Flagelados comem ratos ao norte da miséria. Você acha que essa terra sempre foi assim. É isso aí. Você sai na rua, alguém lhe enfia a a faca nas costelas e lhe arranca o bobo do braço. Você acha que podia ter morrido. É isso aí. Seu nariz começa a se mexer com freqüência. Você acha que nunca pecou e joga pedras no chão. É isso aí. Você passa a mão no rosta e só encotnra pêlos. Você acha que é a falta de saco de fazer a barba. Só. Você ouve um barulho de multidão vindo do norte. Você acha que é sua imaginação. Só. Você começa a grunhir e a correr acuado.
Tarde demais.

retirados do livro Comício de tudo

*apelido de Ricardo de Carvalho Duarte

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Antes do pôr-do-sol

quebrei o coração muitas vezes e me recuperei. agora nao faço força nenhuma, sei que não vai funcionar, não vai dar certo, não vai.

*

e sabe o quê mais? pra mim amor e realidade são contraditórios.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Pessoa, Fernando

"Constituição íntima das cousas"
"Sentido íntimo do Universo"
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está ralando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão

*

Bebendo o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,

Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas caricias
Dos instantes volúveis.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Regina Spektor

And maybe if i sober up
I will stop pretending that love is forever

Love will be the death of me
Love is so fickle
Cause it starts with a flood
And it ends with a tr tr tr tr tr tr tr tr tr tr trickle


*bartender

sábado, 29 de março de 2008

Hello Saferide

Oh, i love you! I wish you got the flu
So that i could take care of you
Like you take care of me
I’m such a Florence, a real Florence Nightingale
I’ll fluff your pillows, i’ll buy you a Spiderman comic and read you
’til you fall asleep
Sleep on my shoulder! I won’t wake you even if
My back turns crooked and i have to walk with a limp for a week

I’ll make you soup and none of that kind that you get in a jar cause i
know you don’t like those
Oh, i love you! I wish you got the flu
You’re the cutest thing i’ve ever seen, like a teddy bear on heroin
Come, i’ll tuck you in tight and i’ll sing for you all night
All night

You can hold the remote, i won’t try to steal it
And the best cushion is yours and you can have your feet on me,
Even though i’m scared of feet and even though i had a hard day at work

Oh, i love you! I wish you got the flu
You can lay your weight on me and i’ll be your backbones
You won’t have to worry
'Cause i’ll be your backbones
Lay your weight on me
Lay your weight on me
You won’t have to worry
'Cause i’ll be your backbones
Lay your weight on me
Lay your weight on me

sexta-feira, 28 de março de 2008

Meter (seja quem for)

Desde que você se foi tudo é descafeinado.

Antunes, Arnaldo

eu não caibo nas roupas que eu cabia, eu não encho mais a casa de alegria, os anos se passaram enquanto eu dormia, e quem eu queria bem me esquecia, sera que eu falei o que ninguem dizia, será que eu escutei o que ninguem ouvia, eu não vou me adaptar, eu não tenho mais a cara que eu tinha, no espelho essa cara não é minha, mas e que quando eu me toquei achei tão estranho, a minha barba estava desse tamanho, será que eu falei o que ninguem dizia, sera que eu ouvi o que ninguem ouvia, eu não vou me adaptar

*

Peste bubônica, câncer, pneumonia, raiva, rubéola, tuberculose, anemia,rancor, cisticircose, caxumba, difteria, encefalite, faringite, gripe, leucemia, hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia, toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia, úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria, sífilis, ciúmes, asma, cleptomania,reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia, hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia, brucelose, febre tifóide, arteriosclerose, miopia, catapora, culpa, cárie, câimbra, lepra, afasia.
E o pulso ainda pulsa.

*

Fases
...corpo enterrado,
sobre corpo enterrado
adubando o chão.
A morrer, ninguém é ensinado
e todos morrerão.

*

Na nossa casa tem varal pra dentro, tem um pé de vento pra respirar.

*

com tanto sentimento [no mundo], deve ter algum que sirva.

*

A chuva ensina a chorar, o tempo ensina a parar de chover.

*

Nem tudo que se tem sem usa, nem tudo que se usa se tem.

Carpinejar, Fabricio

A vida amou a morte
mais do que havia
para morrer

Mello, Thiago de

eu não tenho um caminho novo, o que tenho de novo, é o jeito de caminhar.

Frank, Anne

Sem ilusões a humanidade morreria de desespero ou de tédio.

Albuquerque, Kleber

Porque a gente
ainda se utiliza
de limpar os sonhos
nas mangas da camisa,
de cortar os pés,
nos cacos da ilusão.

Gomes, Armando Tejada

Todas as vozes, todas, todas as mãos, todas,
todo sangue pode ser canção no vento.

Carboniere, Mafra

Não há escritores malditos
há leitores inéditos...
Não há palavras obscenas,
há emoções que sangram,
Apenas.

Dori Caymi e Paulo Cézar Pinheiro

Saudade, eu tenho saudade
mas não de contigo voltar;
eu vivo sentindo saudades
de amar

Kid Rock

Se é bonito, você vê. Se soa bem, você escuta. Se tiver um bom "markentin", você compra. Mas se for real, você sente.

Lorre, Peter

Você me despreza, não é? Se eu pensasse em você provavelmente o desprezaria.

Don Juan Mares (filme)

Quais foram seus planos e sonhos que se perderam no tempo enquanto eu me preocupava comigo?

Oasis

Quem fez um buraco no céu para que o paraíso chorasse por mim?

Pille, Lolita

Eu sou uma artista e minha obra sou Eu.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Lennon, John

Você nunca pegou um coelho e você não é meu amigo.

*

Eu tenho o maior medo desse negócio de ser normal...

*

Creio que a maioria das escolas são prisões - a cabeça da criança é aberta, e faze-la ficar estreita para que vá disputar na sala de aula, é irracional.

*

Eu componho de acordo com as circunstâncias em que eu estou envolvido, seja de ácido ou na água.

*

Adoro essa coisa Punk. É pura. Só não sou fanático em relação a pessoas que se destroem a si mesmas

*

A pior dor é a de não ser querido, de perceber que seus pais não precisam de você da maneira que você precisa deles.

*

Parte da minha política e da Yoko é não sermos levados a sério. Somos humoristas. Todas as pessoas sérias, como Kennedy, Luther King e Gandhi, foram assassinados. Queremos ser os palhaços do mundo.(Acho que acabaram levando ele a sério :~~)

quarta-feira, 12 de março de 2008

Cunningham, Michael

Há poeira subindo, dias infindos e um saguão que dura e dura, sempre repleto da mesma luz castanha e do cheiro meio úmido, meio químico, que há de servir, até que surja algo mais preciso, como cheiro de velhice e de perda, do fim da esperança.

*

Nesse momento, podia ser uma deusa menor descida para acudir a ansiedade dos mortais; descida para se sentar, com uma segurança grave, amorosa, e de seu transe sussurrar, àqueles que entram: Está tudo bem, não tenham medo, tudo o que têm a fazer é morrer.

Retirados do livro As Horas

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Abreu, Caio Fernando

Mas você não me entende. E sei que você não me entende porque não estou conseguindo ser suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro, além de você não me entender, não consegue dar ordem a nada disso, portanto não haverá sentido, portanto não haverá depois.
*
chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, assim como de sutilmente as fosse moldando à minha maneira de desejá-las
*
Mas eu tinha que ficar feliz. E quando você quer, você fica. Comecei a ficar. Afinal, aquele poderia ser o primeiro passo para emergir do pântanode depressão e auto-piedade onde refocilava há quase um ano.
*
Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.
*
-Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss Kiss Kiss. Por que você não me convida para dormirmos juntos?
-Você quer dormir comigo?
-Não.
-Por que não é preciso?
-Porque não é preciso.
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Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros.
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Tô exausto de construir e demolir fantasias. Não quero me encantar com ninguém.
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Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções.
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...porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira
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vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha
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uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros
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A cada junho, sei que nao suportarei o proximo agosto
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Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex (...) talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem junto para Paris (...) talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada.

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Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será o mesmo.

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Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente mas penso tanto em você que na hora de dormir vezenquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos.
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Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas... Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.
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Não te tocar, não pedir um abraço, não pedir ajuda, não dizer que estou ferido, que quase morri, não dizer nada, fechar os olhos, ouvir o barulho do mar, fingindo dormir, que tudo está bem, os hematomas no plexo solar, o coração rasgado, tudo bem
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Podia esperar de qualquer um essa fuga, esse fechamento. Mas não de você, se sempre foram de ternura nossos encontros e mesmo nossos desencontros não pesavam, e se lúcidos nos reconhecíamos precários, carentes, incompletos. Meras tentativas, nós. Mas doces. Por que então assim tão de repente e duro, por que?
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Os olhos parados numa expressão estranha, misto de ironia e tristeza. Mas não se pode negar que tinha algo diferente - alguma coisa assim que transcendia o corpo e ficava pairando como... como uma névoa vaga de manhã de outono. O fato é que ela possuía uma graça especial, talvez o jeito como se debruçava à janela, ou mesmo o jeito de sorrir apertando os lábios, como se temesse revelar no sorriso todo o seu mundo interior.
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Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse. Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.
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Tenho tentado aprender a ser humilde. A engolir os nãos que a vida me enfia pela goela abaixo. A lamber o chão dos palácios. A me sentir desprezado-como-um-cão, e tudo bem, acordar, escovar os dentes, tomar um café e continuar.
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A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa imcompreenssão.
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Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?
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Só quero ir indo junto com as coisas, ir sendo junto com elas, ao mesmo tempo, até um lugar que não sei onde fica, e que você pode até chamar de morte, mas eu chamo apenas de porto.
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Escuta aqui, cara, tua dor não me importa, estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enloquecendo, sendo presas, indo para o exílio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando seu amor perdido. Foda-se seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal esse seu ovo mesquinho e fechado.
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Ainda que dentro de mim as águas apodreçam e se encham de lama e ventos ocasionais depositem peixes mortos pelas margens e todos os avisos se façam presentes nas asas das borboletas e nas folhas dos plátanos que devem estar perdendo folhas lá bem ao sul e ainda que você me sacuda e diga que me ama e que precisa de mim: ainda assim não sentirei o cheiro podre das águas e meus pés não se sujarão na lama e meus olhos não verão as carcaças entreabertas em vermes nas margens, ainda assim eu matarei as borboletas e cuspirei nas folhas amareladas dos plátanos e afastarei você com o gesto mais duro que conseguir e direi duramente que seu amor não me toca nem me comove e que sua precisão de mim não passa de fome e que você me devoraria como eu devoraria você ah se ousássemos.

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tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha necessidade de ti. torna-se desesperada, urgente. eu ja não sei o que faço. não sinto nenhuma alegria além de ti. como pude cair assim nesse fundo poço? quando foi que me desequilibrei? não quero me afogar, quero beber tua água. não te negues, minha sede é clara.

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e de madrugada eu me via catando cacos de vidros entre os lençois.

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sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo você pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo meu deus como você me doia de vez em quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta coisa mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada so olhando e pensando meu deus mas como você me doi de vez em quando.

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e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva.

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e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque eu fui percebendo que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era

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Não choro mais. na verdade nem sequer entendo porque digo mais, se não estou certo se alguma vez chorei. acho que sim, um dia, quando havia dor. agora só resta uma coisa seca. dentro, fora.

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chorei por 3h depois durmi 2 dias. parece incrivel ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. olhar, quando já não se acredita no que se ve. e não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite.

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chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanha que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguem, recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. tenho vontade de gritar que essa dor é so minha e pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso. a unica magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. a unica magia que existe é a nossa incompreensão.

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Você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria

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Em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não crescia se eu a mantivesse presa num pequeno vaso.

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Eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e, se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido

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Eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia desses eu descobri existindo.

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Ah, não me venha com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, eu nunca tive porra de ideal nenhum, eu só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista capitalista, eu só queria era ser feliz, cara, gorda, burra, alienada e completamente feliz. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê.

*

está tudo planejado
se amanha o dia for cinzento
se houver chuva
ou se houver vento
se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza, frio
das coisas espalhadas pela casa
a mesa posta
e gasta
esta tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te

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...Importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo das veias.

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Porque chega uma hora em que você tem que escolher a vida. Eu talvez não saiba bem ainda o que isso significa, mas é claro para mim que a hora dessa escolha é agora, está acontecendo.

(Carta a Adelaide Amaral. Sampa, 29 de outubro de 1984.)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Proust, Marcel

Aqueles que amam e os que são felizes não são os mesmos