domingo, 11 de dezembro de 2016

César, Ana Cristina

O súbito preamar
amor prelúdio
anuncia.

Inesperadas estrelas
silhuetas
que se unem
ajuntam.

Céus sem vácuo
Véus caindo
ainda findam.


*

Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos

que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

*

último adeus III

Tenho escrito longamente sobre esse assunto
Aizita traz o chá
Bebericamos na varanda
Nenhum descontrole na tarde
Intervalo para as folhascaindo da árvore em frente
que nos entra pela janela
Não precisamos nos dizer nada
O parapeito vaza outra indicação
seca do presente
Ouvimos:
outra indicação seco do presente
Aizita vai ver na folhinha
pendurada no prego da cozinha
Acaba o chá
Acaba a colher de chá
Longamente
Eu também, bem, tenho escrito

*

16 de junho


Era noite e uma luva de angústia me afagava o pescoço. Composições escolares rodopiavam, todas as que eu lera e escrevera e ainda uma multidão herdada de mamãe. Era noite e uma luva de angústia... Era inverno e a mulher sozinha... Escureciam as esquinas e o vento uivando... Saí com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura, meninas de saiote que zumbiam nas escadas íngremes. Galguei a ladeira com caretas, antecipando o frio e os sons eróticos povoando a sala esfumaçada.

*

atrás dos olhos das meninas sérias

Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do adultério. Separatista protestante. Melindrosa basca com fissura da verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o primeiro side-car anfíbio nos classificados de aluguel. No flanco do motor vinha um anjo encouraçado, Charlie’s Angel rumando a toda para o Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro. Pulo para fora (mas meu salto engancha no pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás. Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê novela de verdade e meu manto azul dourado mais pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da 6 frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e pernalta.

*

Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa o trem
os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café

*

8 outubro 71

Penso em paisagens da PUC, coisas esperadas, disposições esperadas, e as caras! Deus! as caras! as pessoas tão estupidamente familiares: onde está a raridade, o precioso dos raros, a aura dos que vêm pouco, o halo dos desaparecidos? O que eu queria mesmo era aquele gesto sem olhos (a medo): eu também sei, eu também, eu entendo. Eu queria era aquele gesto que um dia conciliasse os desentendimentos, ou a ausência.

retirados do livro Poética, editora Companhia das Letras