sábado, 12 de setembro de 2009

Shelley, Mary

Um detalhe relevante: mesmo alquebrado como estava, tinha um profundo sentimento do belo em relação à natureza. O céu estrelado, o mar e todos os panoramas surpreendentes que essas regiões oferecem, tudo parecia ter ainda a faculdade de elevar-lhe a alma. Um homem assim tem dupla existência: por mais que sofra e esteja avassalado por decepções, fica, quando se recolhe a si mesmo, rodeado por uma auréola na qual não penetram a dor ou a revolta.

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Lençois de neblina subiam dos rios que corriam através da baixada, encrespando-se como densas coroas em volta das montanhas opostas, cujos píncaros perfuravam as nuvens, enquanto a chuva jorrava do céu plúmbeo, aumentando a impressão melancólica que o ambiente exercia sobre mim. Por que - ai de mim! - há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se confinassem à fome, sede e desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena para provocar-nos as mais diversas e inesperadas vocações.

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Fiquei caminhando pelo aposento, em grande excitação. Arrependi-me de tê-lo deixado partir. Devia ter entrado em luta mortal com ele, opondo à sua força descomunal todo o poder da minha razão.

Retirado do livro Frankenstein, tradutor Éverton Raulph, editora Ediouro.