segunda-feira, 28 de junho de 2010

Amado, Jorge

E ele veio apesar do gosto do corpo de Ivone o prender ali, de saber que deixara nela um filho. Dizia para si mesmo que ia fazer dinheiro para ela e para o filho, voltaria com um ano. A terra era fácil em Ilhéus, plantaria uma roça de cacau, colheria os frutos, voltaria por Ivone e pela criança. O pai dela não voltou, ninguém sabia mesmo onde ele estava. Um velho está dizendo que ninguém volta destas terras, nem mesmo os que têm mulher e dois filhos. Por que essa harmônica não pára de tocar, por que essa música é tão triste? Por que é vermelha como sangue essa lua sobre o mar?

*

Hoje, no entanto, nem a quer mirar, seus olhos procuram outra visão. A lua está no alto dos céus. Por que se pode fitar a lua e não há olhos que aguentem fitar o sol?

*
- (...) Uma vez vi ela de novo. Vinha de longe, tenho certeza. De muito longe, não era daquela terra...
- Tão bonita a lua... - disse a rameira e o marinheiro reparou que ela tinha os olhos tristes. Ela queria dizer outra coisa mas não encontrou palavras.
- De longe, quem sabe se do fundo do mar? Só sei mesmo que veio e foi embora. É só mesmo o que sei. Ela nem reparou em mim. Mas até hoje me lembro do jeito dela rir, dos dentes, da brancura dela. E o vestido - quase gritou de alegria ao se recordar do novo detalhe -, o vestido de mangas abertas...
Emborcou o copo, esticou o beiço, não estava mais alegre. A voz da mulher que cantava na noite lírica ia sumindo devagarinho:
"Partiu para nunca mais voltar".
- E depois? - perguntou novamente o de anelão falso.
O de colete azul não respondeu e a prostituta não sabia se ele estava olhando para a lua ou para alguma coisa que ela não via lá, mais além da lua e das estrelas, mais além do céu, mais além da noite tão tranquila. E, antes que as lágrimas viessem, partiu com o loiro marinheiro para a festa da noite de luar.

*

Vê através de seus olhos secos, sem lágrimas, pensa que seco está seu coração também, coberto pela sombra do cacau.
Não adianta mais pensar em fugir, agora seus pés estão presos no visgo daquela terra, visgo de cacau mole, visgo de sangue também. Nunca mais será possível sonhar outra vida diferente. (...)
Seus olhos secos, suas mãos trêmulas, seu coração doído. (...)
E a angústia aumenta, ele veste a roupa quase correndo, sente uma necessidade de deixar que a chuva caia sobre ele, sobre sua cabeça ardente, lave suas mãos sujas de sangue, lave seu coração manchado. Se esquece de descer em passos cuidadosos para não acordar as empregadas. E sai pelo quintal, no leito da estrada de ferro arranca o chapéu e deixa que a chuva escorra sobre o seu rosto, como se fossem as lágrimas que ele não chorou.

Trechos retirados do livro Terras do Sem-Fim, editora Círculo do Livro

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Anjos, Cyro dos

Recuei.
Pareceu-me que do mar me vinha qualquer mensagem, inexprimível por palavras, e contudo inquietante. Uma grande voz confusa se erguia do fundo das águas, arrastando-se como um trovão longínquo. As trombetas do Juízo Final deverão ser, assim, a um tempo distantes e próximas, surdas, mas dominadoras. Ouvi-las-emos, é dentro da alma, sem a interferência dos sentidos, tal como ouvimos a voz do mar.

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Ai de nós, os que vamos passando!

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Neste carnaval de 1935, hoje começado, mais do que nunca senti de modo tão vivo a impossibilidade de me fundir na massa, de seguir, como célula passiva, seu movimento de translação, de receber e transmitir essas forças misteriosas que nela atuam, comunicando-se de indivíduo para indivíduo e resultando, afinal, numa força uniforme, esmagadora, de onda ou ciclone.
Sinto inutilmente, em mim, uma vaga nervosa que quer acudir ao apelo que a multidão dirige a cada unidade. Quero rir, chorar, cantar, dançar ou destruir, mas ensaio um gesto, e o braço cai, paralítico.

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Será o poder de criar e de transfigurar, que possui a alma humana, ou haverá uma efetiva transformação no tecido íntimo das coisas? Afinal, pouco importa. A realidade é a aparência, e o que é - no fundo - não o é para nós, como diz Silvano.

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Natal! Fiquei até tarde no alpendre. Com a saída dos vizinhos para a missa do galo, recolhi-me. Outras missas, noutros tempos... Como esta vida vai correndo, vai correndo... Um dia sentimos uma sacudidela, como no poema:

Stop.
A vida passou
Ou foi o automóvel? ¹

¹Poema Cota Zero de Drummond.

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Já estava palmilhando a terra vaga do sono, para frente, para trás, segundo a luta surda que se trava em nós, entre uma parte do eu, que aspira ao abandono, e outra que contra ele reage, talvez pelo receio inconsciente que inspira o adormecer, imagem da morte; ganhava-me o corpo uma doce lassidão, e o espírito se embebia no torpor que afrouxara os nervos; apenas impressões vagas, preste a se apagarem, me vinham das coisas, e a uma reminiscência tênue, quase a esvaecer, reduzia-se esta lembrança permanente com que, no estado de vigilia, a memória sustenta, a cada instante, nossa precária unidade psíquica, ligando o momento que passou ao momento presente.

Trechos retirados do livro O Amanuense Belmiro, Editora Abril Cultural

Flaubert, Gustave

Desejava talvez fazer a alguém a confidência de todas estas coisas. Mas, como explicar um inexplicável mal estar que muda de aspecto como as nuvens e que se move em turbilhão como o vento? Faltava-lhe, pois, palavras, ocasião e coragem.

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Depois de ter assim batido com o aço no coração sem lhe arrancar uma só faísca, incapaz afinal de compreender o que não sentia, como de acreditar em tudo que não se manifestava sob formas convencionais, persuadiu-se sem difuculdade de que a paixão de Charles já nada tinha de exorbitante. As suas expansões haviam-se tornado regulares; beijava-a a horas certas. Era um hábito como os outros e como que uma sobremesa prevista com antecipação após a monotonia do jantar.

*

Mas, era precisamente à hora das refeições que ela já não podia mais, naquela salinha, do rés-do-chão, com o fogão a fumegar, a porta a ranger, as paredes salitrosas, as lajes úmidas; toda a amargura da existência lhe parecia como que servida no fundo de seu prato, e ao fumegar do cozido, saíam-lhe do fundo da alma outros sopros de tédio.

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Não teriam eles outra coisa a dizer? Os seus olhos, contudo, transbordavam duma conversação mais séria; e, na medida em que se esforçavam em achar frases banais, sentiam-se ambos invadidos pelo mesmo quebranto; era como que um murmúrio da alma, profundo, contínuo, que lhes dominava aquele das vozes. Surpreendidos e admirados por aquela suavidade nova, não pensavam em descrever-se a sensação ou descobrirem-lhe a causa. As felicidades futuras, como as praias dos trópicos, projetam, na imensidade que as precede, as suas molezas nataias, brisas perfumadas; e entorpecemonos na sua languidez, sem mesmo nos importar com o horizonte que não avistamos ainda.

Trechos retirados do livro Madame Bovary, Editora Clube do Livro, Tradução de José Maria Machado