Pareceu-me que do mar me vinha qualquer mensagem, inexprimível por palavras, e contudo inquietante. Uma grande voz confusa se erguia do fundo das águas, arrastando-se como um trovão longínquo. As trombetas do Juízo Final deverão ser, assim, a um tempo distantes e próximas, surdas, mas dominadoras. Ouvi-las-emos, é dentro da alma, sem a interferência dos sentidos, tal como ouvimos a voz do mar.
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Ai de nós, os que vamos passando!
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Neste carnaval de 1935, hoje começado, mais do que nunca senti de modo tão vivo a impossibilidade de me fundir na massa, de seguir, como célula passiva, seu movimento de translação, de receber e transmitir essas forças misteriosas que nela atuam, comunicando-se de indivíduo para indivíduo e resultando, afinal, numa força uniforme, esmagadora, de onda ou ciclone.
Sinto inutilmente, em mim, uma vaga nervosa que quer acudir ao apelo que a multidão dirige a cada unidade. Quero rir, chorar, cantar, dançar ou destruir, mas ensaio um gesto, e o braço cai, paralítico.
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Será o poder de criar e de transfigurar, que possui a alma humana, ou haverá uma efetiva transformação no tecido íntimo das coisas? Afinal, pouco importa. A realidade é a aparência, e o que é - no fundo - não o é para nós, como diz Silvano.
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Natal! Fiquei até tarde no alpendre. Com a saída dos vizinhos para a missa do galo, recolhi-me. Outras missas, noutros tempos... Como esta vida vai correndo, vai correndo... Um dia sentimos uma sacudidela, como no poema:
Stop.
A vida passou
Ou foi o automóvel? ¹
A vida passou
Ou foi o automóvel? ¹
¹Poema Cota Zero de Drummond.
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Já estava palmilhando a terra vaga do sono, para frente, para trás, segundo a luta surda que se trava em nós, entre uma parte do eu, que aspira ao abandono, e outra que contra ele reage, talvez pelo receio inconsciente que inspira o adormecer, imagem da morte; ganhava-me o corpo uma doce lassidão, e o espírito se embebia no torpor que afrouxara os nervos; apenas impressões vagas, preste a se apagarem, me vinham das coisas, e a uma reminiscência tênue, quase a esvaecer, reduzia-se esta lembrança permanente com que, no estado de vigilia, a memória sustenta, a cada instante, nossa precária unidade psíquica, ligando o momento que passou ao momento presente.
Trechos retirados do livro O Amanuense Belmiro, Editora Abril Cultural
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