quarta-feira, 2 de junho de 2010

Flaubert, Gustave

Desejava talvez fazer a alguém a confidência de todas estas coisas. Mas, como explicar um inexplicável mal estar que muda de aspecto como as nuvens e que se move em turbilhão como o vento? Faltava-lhe, pois, palavras, ocasião e coragem.

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Depois de ter assim batido com o aço no coração sem lhe arrancar uma só faísca, incapaz afinal de compreender o que não sentia, como de acreditar em tudo que não se manifestava sob formas convencionais, persuadiu-se sem difuculdade de que a paixão de Charles já nada tinha de exorbitante. As suas expansões haviam-se tornado regulares; beijava-a a horas certas. Era um hábito como os outros e como que uma sobremesa prevista com antecipação após a monotonia do jantar.

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Mas, era precisamente à hora das refeições que ela já não podia mais, naquela salinha, do rés-do-chão, com o fogão a fumegar, a porta a ranger, as paredes salitrosas, as lajes úmidas; toda a amargura da existência lhe parecia como que servida no fundo de seu prato, e ao fumegar do cozido, saíam-lhe do fundo da alma outros sopros de tédio.

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Não teriam eles outra coisa a dizer? Os seus olhos, contudo, transbordavam duma conversação mais séria; e, na medida em que se esforçavam em achar frases banais, sentiam-se ambos invadidos pelo mesmo quebranto; era como que um murmúrio da alma, profundo, contínuo, que lhes dominava aquele das vozes. Surpreendidos e admirados por aquela suavidade nova, não pensavam em descrever-se a sensação ou descobrirem-lhe a causa. As felicidades futuras, como as praias dos trópicos, projetam, na imensidade que as precede, as suas molezas nataias, brisas perfumadas; e entorpecemonos na sua languidez, sem mesmo nos importar com o horizonte que não avistamos ainda.

Trechos retirados do livro Madame Bovary, Editora Clube do Livro, Tradução de José Maria Machado

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