sábado, 31 de janeiro de 2009

Borges, Jorge Luis (parafraseando)

Retirados de Outras Inquisições

Um livro, qualquer livro, é para nós um objeto sagrado: já Cervantes, que talvez não escutasse tudo que lhe diziam as pessoas*, lia até "os papéis rasgados nas ruas".

*é relevante colocar que no trecho Borges está comparando a fala à escrita, e enfatiza que Cervantes é tão adepto a esta que nega aquela.

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Também me lembro com certo estupor de uma assembléia convocada apenas para confundir o anti-semitismo. Há várias razões para que eu não seja anti-semita; a principal é esta: a diferença entre judeus e não-judeus me parece, em geral, insignificante; às vezes, ilusória ou imperceptível. Ninguém, naquele dia, quis compartilhar minha opinião; todos juraram que um judeu-alemão difere enormemente de um alemão. Em vão lembrei que é exatamente isso o que diz Hitler; em vão insinuei que uma assembléia contra o racismo não deve tolerar a doutrinha de uma Raça Eleita; em vão invoquei a sábia declaração de Mark Twain: "Eu não pergunto de que raça é um homem; basta que seja um ser humano; ninguém pode ser nada pior" (The Man that Corrupted Hadleyburg, p.204).

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A biografia de Bernard Shaw por Frank Harris contém uma carta admirável de Shaw, de que transcrevo essas palavras: "Compreendo tudo e a todos e sou nada e sou ninguém".

Bloy, Léon

Não há na Terra ser humano algum capaz de declarar quem é, com certeza. Ninguém sabe o que veio fazr neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas idéias, nem qual é o seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro da Luz... A história é um imenso texto litúrgico em que os iotas e os pontos não valem menos do que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de uns e outros é indeterminável e está profundamente oculta.

Parafraseado por Borges no livro Outras Inquisições

Mallarmé

O mundo existe para chegar a um livro.

Parafraseado por Borges no livro Outras Inquisições

sábado, 24 de janeiro de 2009

Lispector, Clarice

às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. é que ao escrever eu me dou as mais inesperadas surpresas. é na hora de escrever que muitas vezes fico consciente das coisas, das quais, sendo incosciente, eu antes não sabia de nada

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Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?

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E agora só queria ter o que tivesse sido e não fui.

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Não sei quem acusar, mas deve haver um réu.

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- Eu vou ter tanta saudade de mim quado morrer.

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- Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar.

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Você compreende, não é, mamãe, que eu não posso gostar de você a vida inteira.

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Ter nascido me estragou a saúde.

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Há um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos, e a isto chamamos amor.

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...Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar...

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Porque tudo na vida começa com um 'sim'. Uma molécula disse 'sim' pra outra e a vida nasceu...Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.

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Se me descuido, morro.

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Estou triste. Um mal-estar que vem do êxtase não caber na vida dos dias.

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Existir é tão completamente fora do comum que, se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama "eu existo", a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista

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Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente - como em dores de parto - e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim.

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Tenho saudade do que poderia ter sido e não fui.

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Perder-se é ir achando sem saber o que fazer com o que se for achando.

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A partir daqui todos retirados de A Paixão Segundo G.H.

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Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em "pureza", nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.

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Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monotonia de meu amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados. O que era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto fio d'água correndo, e a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, e o silêncio no vôo dos mosquistos. E o presente disponível. E a minha libertação lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa. Eu não sabia ver que aquilo era amor delicado. E me parecia o tédio. Era na verdade o tédio.

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Tudo iria acabar, quando acabasse o que chamávamos de intervalo de amor; e porque ia acabar, pesava trêmulo com o próprio peso de seu fim já em si. Lembro-me de tudo isso como através de um tremor de lágrimas.

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A balança tinha agora um prato único. Nesse prato estava a minha profunda recusa de baratas. Mas agora "recusa de baratas" eram meras palavras, e eu também sabia que na hora de minha morte eu também não seria traduzível por palavra.

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E uma desilusão. Mas desilução de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele esta muito feliz porque finalmente foi desiludido.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Bukowski, Charles

O trecho a seguir foi retirado do livro O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

Às vezes, me sinto como se estivéssemos todos presos num filme. Sabemos nossas falas, onde caminhar, como atuar, só que não há uma câmera. No entanto, não conseguimos sair do filme. E é um filme ruim.


Os trechos a seguir foram retirados do livro Misto Quente


Eu gostava do lugar, tinha grandes árvores que davam sombra, e desde que algumas pessoas haviam me dito que eu era feio, sempre preferia a sombra ao sol, a escuridão à luz.

*

Naquela tarde depois da escola eu caminhei apressado pra casa, logo que a aula terminou, sem esperar por David. Não queria vê-lo apanhar novamente dos nossos colegas ou da sua mãe. Não queria ouvir o seu triste violino. Mas no dia seguinte, na hora do almoço, quando ele se sentou comigo, comi suas batatas fritas.

*

- Joe! Joe! Cadê você, Joe?
Joe não ia vir. Não valia a pena confiar em nenhum outro ser humano. O que quer que fosse preciso para estabelecer essa confiança, não estava presente na humanidade.

*

[se referindo aos escritores]
Pra mim, esses homens que haviam entrado em minha vida, todos vindos de lugar nenhum, eram minha única chance. Eram as únicas vozes que falavam comigo.

*

Lia meus livros à noite, desse jeito, debaixo das cobertas com a lâmpada superaquecida. Lia todas aquelas belas frases enquanto me sufucava. Era mágico.

*

Eu não tinha interesses. Eu não tinha interesses por nada. Não fazia a mínima idéia de como iria escapar. Os outros, ao menos, tinham algum gosto pela vida. Pareciam entender algo queme era inacessível. Talvez eu fosse retardado. Era possível. Freqüentemente me sentia inferior. Queria apenas encontrar um jeito de me afastar de todo mundo. Mas não havia lugar para ir. Suicídio? Jesus Cristo, apenas mais trabalho. Sentia que o ideal era poder dormir por uns cinco anos, mas isso eles não permitiriam.

*

- Então você não quer estudar? O que você sabe fazer? No que você é bom? Do que você é capaz? Gastei milhares de dólares na sua criação, para alimentá-lo e vestí-lo! Vamos supor que eu ponha você no olho da rua? Então, o que você fará?
- Caçarei borboletas.

*

O cachorro caminhou até o pedaço de sanduíche, aproximou seu nariz e recuou. Dessa vez não olhou para trás. Disparou pela rua.
Já não havia dúvidas de por que eu tinha me sentido deprimido durante toda a minha vida. Não estava recebendo a alimentação adequada.

*

O que eu queria era uma caverna no Colorado com um estoque de comida e bebida para três anos. Limparia minha bunda com areia. Qualquer coisa, qualquer coisa que me salvasse do afogamento desta existência trivial, covarde e estúpida.

Os trechos a seguir foram retirados do livro O amor é um cão dos diabos

vou embora, ela disse. eu te amo mas você é
louco, um caso perdido.
ela apanhou a bolsa e bateu a porta.
provavelmente é algum distúrbio profundamente enraizado na infância
que me faz assim vulnerável, pensei.
então sai de casa e fui até o meu fusca.
dirigi para o norte pela western com o rédio ligado.
havia putas caminhando pra lá e pra cá
dos dois lados da rua e Madge parecia
mais perdida que
qualquer uma delas.

*

mulheres nao sabem como amar,
ela me disse.
você sabe como amar
mas mulheres só querem
parasitar.
hahaha, eu ri.
por isso não se preocupe por ter terminado
com Susan
porque apenas irá parasitar
outro homem.
falamos um pouco mais
então eu me despedi
desliguei o telefone
fui ao banheiro
e mandei uma boa merda de cerveja
e basicamente pensando, bem,
continuo vivo
e tenho a capacidade de expelir
sobras do meu corpo
e poemas.
enquanto isso acontecer
serei capaz de lidar com
traição
solidão
unhas encravadas
gonorréia
e boletim econômico do
caderno de finanças.
com isso
me levantei
me limpei
dei a descarga
e então pensei:
é verdade:
eu sei como
amar.
ergui minhas calças e caminhei
para a outra peça.

*

um outro qualquer as terá
e eu caminharei por aí
em meu short surrado
fumando cigarros demais
tentando extrair algum
drama
de nehum progresso
de fato.

*

tenho que pensar na morte mais e mais
senilidade
muletas
poltronas
escrevendo poesia púrpura com a
caneta pingando
quando mocinhas com bocas
de piranha
corpos como limoeiros
corpos como nuvens
corpos como flashes de luz
pararem de bater à minha porta.
não se preocupe com rejeições, parceiro.
fumei 25 cigarros esta noite
e você sabe sobre a cerveja.
o telefone tocou apenas uma vez:
era engano.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Dostoievski, Fiodor

e agora se abriram mil torneiras em minha cabeça e tenho de verter meu coração em uma torrente de palavras, se não quero que me afoguem.

*

Eu sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.

*

Tenho quarenta anos atualmente. Ora, quarenta anos, é toda a vida, é a profudna velhiche. É inconveniente, é imoral, é vil viver além dos quarenta. Quem vive depois dos quarenta anos? Respondei sinceramente, honestamente! Vou dizer-vos, sim, eu: os imbecis, os patifes, esses vivem mais de quarenta anos. Eu o proclamarei à face de todos os velhos, de todos os respeitáveis velhos, de todos os velhos de cabelos cor de prata e perfumados! Eu o proclamarei à face do universo inteiro. Tenho o direito de falar assim, porque eu, eu viverei até os sessenta anos! Até os setenta anos! Até os oitenta anos!

*

Ah! Senhores! É possível que eu me considere extremamente inteligente pela única razão de que, em toda a minha vida, nunca pude começar nem acabar fosse o que fosse. Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como nós todos. Mas que fazer, senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água em uma peneira?

*

Se me disserdes que o caos, as trevas, as malições, que tudo isso pode também ser calculado de antemão, se bem que a simples possibilidade desse cálculo irá paralisar o impulso do homem e que a razão triunfará assim uma vez mais, então eu vos confessarei que o homem só tera um meio de fazer o que lhe apraz, que é perder a razão e tornar-se completamente louco.

*

Mas, seja como for, "duas vezes dois igual a quatro" é uma coisa bem insuportável. "Duas vezes dois igual a quatro", na minha opinião, respira impudência. "Duas vezes dois igual a quatro" nos desfitura insolentemente. De mãos nos quadris, ele se atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que "duas vezes dois igual a quatro" seja uma coisa excelente, mas, se é preciso louvar tudo, eu vos direi que "duas vezes dois igual a cinco" é também às vezes uma coisinha muito encantadora.

Retirados do livro Noites Brancas e Outras Histórias