quarta-feira, 21 de julho de 2010

Couto, Mia

Joelhos juntos, vai olhando os pés como se contemplasse a linha do horizonte. Saudade do tempo em que tinha saúde para desprezar o próprio corpo. Agora pouca convicção lhe resta, mesmo quando se lamenta:
- Sonhar me deixa muito cansado. Dá um trabalhão danado, sonhar.
- Se o senhor não sonhasse, já teria arrumado as ferramentas na caixa.
As ferramentas estão espalhadas pelo soalho. Ele recusa arrumá-las na devida caixa.
- Fazem-me companhia - justifica assim a desordem. Dona Munda tem outra explicação para aquele caos: o marido ainda acredita poder ser chamado de emergência.
- Cure-me de sonhar, Doutor.
- Sonhar é uma cura.
- Um sonhadeiro anda por aí, por lonjuras e aventuras, sei lá fazendo o quê e com quem... Não haverá um remédio que me anule o sonho?
O médico ri-se, sacudindo a cabeça. Retira da sacola o estetoscópio, mas o doente, mal pressente a intenção, ergue-se, esquivo. Sidónio deixa escapar o aparelho que tomba entre chaves de fenda, alicates e apetrechos do ex-mecânico. Bartolomeu espreita de lado, com desconfiança de bicho:
- Todos elogiam o sonho, que é o compensar da vida. Mas é o contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos.
- Sonhar só o faz ficar mais vivo.
- Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver, Doutor.

*

Mais nova, escutava as outras lamentarem-se do destino, elas que estavam na flor da idade. Nunca lhe doeu tanto uma inveja. Porque, a ela, nenhuma idade tinha sido de flores. Amarelecida a idade, esbateu-se o sonho de ser pétala, simples lembrança de fragrância.

*

No resto, Mundinha partilha a condição das demais mulheres da Vila: envergonhada de ter nascido, temente de viver e triste por não saber morrer.
- Posso perguntar uma coisa? Por que razão vocês passaram a dormir separados?
- A vida é um rio, Doutor; a água junta e separa.
- Você é feliz, Dona Munda?
- Não é que seja infeliz. Eu não sou é feliz.
(...)
- Uma coisa aprendi na vida. Quem tem medo da infelicidade nunca chega a ser feliz.

*

Quem tinha vivido ali? O recepcionista, subterfugitivo, vagueia: não existe o ter vivido. Viver é um verbo sem passado.

*

Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedora para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideiais mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormirmos.

*

Somos donos do Tempo apenas quando o Tempo se esquece de nós.

*

- Não sou eu que fumo, Doutor Sidonho. O cigarro é que me está fumando a mim.
- Nisso estamos de acordo. O senhor não devia tocar mais em cigarro.
- O Doutor me desculpe, mas o senhor não entende o fumar.
- Não entendo, como?
- Não é o tabaco que a gente consome. A gente fuma é a tristeza.

*

O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. (...)
- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho - respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
- Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente.
- Sei prevenir-me.
- E porquê, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.
- Que olhar é meu nos olhos teus?

*

Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.

*

Há esperas que nunca se aprendem. Mesmo sob o dilúvio, continuaremos aguardando a chuva. É de outra água que esperamos.

*

Como diz munda: apenas um mortal pecado pode curar a doença de viver.

*

Talvez seja e espessura desse céu que faz os cacimbeiros sonharem tanto. Sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino que é sempre tardio e pouco.

Trechos retirados do livro Veneno de Deus, Remédio do Diabo, da editora Companhia das Letras

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Oz, Amós

No caderno Almon escreveu, entre outras coisas, que, sem todos os animais, até mesmo as noites de verão mais ralas lhe pareciam às vezes como cobertas por uma neblina turva, uma neblina que desce sobre tudo quase enterrando a aldeia, o coração e o bosque. O nevoeiro das noites de verão, escreveu o pescador no seu caderno, não é seco e leve como o vapor fino da geada do inverno, mas é empoeirado, imundo e opressivo.
Desde aquela noite em que Nehi, o demônio, levou consigo todos os animais e os arrastou atrás dele até o seu esconderijo na montanha, os habitantes da aldeia viviam cultivando seus pomares em silêncio e medo. Sem nenhum animal em casa e sem nenhum animal na lavoura. Sozinhos. Apenas o rio ainda passava, rolando na correnteza do seu curso pequenas pedras lisas, galhos quebrados, blodos de lodo. Dia e noite, inverno e verão, sem repouso.

*

O bosque é um lugar perigoso. Tome cuidado com as montanhas. Todo arbusto pode conter más intenções. Toda rocha pode esconder atrás de si alguma coisa que não é rocha. (...) A escuridão nos odeia. Lá fora está cheio de perigos.

Das profundezas dos bosques, do coração dos bosques emaranahdos que cercavam a aldeia por todos os lados, de manhã até a noite soprava um cheiro estranho de escuridão. E, até mesmo nos meses de verão chegava dos bosques um tipo de penumbra de inverno. E o rio, efervescente, borbulhante, se contorcia entre os pátios e se arrastava até o vale, correndo furioso no declive com uma espuma branca nas suas margens, como se corresse com toda a força para fugir para bem longe, e mesmo assim ele se detinha por um minuto para almadiçoar em seu curso toda a aldeia.

*

(...) pois em toda sala de aula ou grupo, disse o homem, há um assim, não desejado, alguém diferente que insiste em correr atrás do grupo de crianças onde quer que elas estejam, e sempre fica a uma distância de alguns passos atrás dos demais, constrangido e envergonhado, invulnerável às ofensas e gozações, ansiando desesperadamente por ser aceito, poder pertencer, e para tanto está disposto a fazer tudo, servir como escudeiro, escravo deles, disposto até a se fazer de tonto para ser engraçado, disposto a ser palhaço e alvo de zombarias, que dele debochem o quanto quiserem, que até mesmo o maltratem um pouco, não importa, ele entrega a eles, gratuitamente, seu coração rejeitado.

Trechos retirados do livro De repente, nas profundezas do bosque, da editora Cia. das Letras, tradução de Tova Sender.

domingo, 11 de julho de 2010

Cortázar, Julio

A partir daqui retirado do livro Divertimento, editora Punto de Lectura

–Tu orgullo poético tiene algo de repugnante filantrópico –dijo Renato, rompiendo un silencio que duraba–. Apenas vomitás un par de imágenes interesantes, te sentís cómplice de Dios, lo ayudás a hacer el mundo.
–Estamos condenados a ser sus cómplices.
–Yo no. Mi pintura se basta a sí misma, se ordena en un pequeño mundo cerrado. No necesita del mundo para ser, y viceversa.
–¡Y hablás de mi orgullo!

*

– No, sigamos charlando – le pedí –. Venga a sentarse con nosotros, Sú. Algo de raro hay aquí esta noche, y todos tenemos un poco la culpa. Jorge está soñoliento, Marta se ha puesto didáctica. Ayúdenos, Sú.
Era el gran conjuro, el perdido máximo. Cuántas veces le había oído yo a Renato la misma frase: “Ayúdame, Sú”. Botón suelto, ensalada sosa, horario perdido, moscardón o avispa en el taller. Ayúdenos, Sú. Sea la gran superintendente de los juegos. La controladora de los juegos de agua, oh sí, Sú.

*

Del mismo modo que el ovillo está ahí (o la madeja, su pequeño mar fofo naranja o verde sobre la falda) y vos tirás de una punta, entonces la punta se entrega, la sentís ceder desenvuelta, oh pibe qué estupendo tirar y tirar, sobre un cachito de cartón vas envolviendo el hilo para hacer un buen ovillo sin nudos, nada de ovillado, algo continuo y terso como la avenida General Paz.
Perfectamente sacás el hilo y te parece que después de todo el otro ovillo no estaba tan enredado, empezás a pensar que estás perdiendo el tiempo, siempre el hilo viniendo mansito a ponerse sobre sí mismo en el cartón, lo de más abajo tapado por lo de más arriba que en seguida es lo de más abajo (como en las buenas polentas: una capa de tuco, una de polenta, una de queso rallado; o el juego que hacíamos de chicos, primero yo ponía una mano, entonces abuelita ponía encima la de ella, y yo la otra y ella la otra; yo sacabala de abajo –despacito despacito porque ahí estaba la delicia– y la ponía arriba; ella sacaba la de abajo y la ponía encima, yo sacaba la de abajo –ahora más ligero– y la ponía encima, ya venía la de ella, la míaladellalamía qué manera de reírnos–) porque viene otra capa de hilo a arrollarse por encima – que en seguida es lo de más abajo.
Todo va así perfectamente, y a vos te parece que estás perdiendo el tiempo porque el ovillo no estaba enredado, el hilo viene y viene sin tropiezo, parece increíble que de esa masa glutinosa nazca el hilillo claro que sube por el aire hasta tu mano. Y entonces oís (los dedos sienten sonar esta ruptura terrible) que algo se resiste, se pone de pronto tenso, el hilo zumba envuelto en su polvillo de talco y pelusa, un nudo cierra la salida, cierra el ritmo feliz, el ovillo estaba enredado en redado ahí dentro entonces hay cosas que no son el hilo solamente, el ovillo no es un hilo arrollado sobre sí, dentro del mundo del ovillo entrevé ahora tu sorpresa cosas que no son hilo, ahora ya sabés que hilo más hilo no basta para dar ovillo. Un nudo, qué es un nudo, hilo mordiéndose, sí pero nudo, no solamente hilo dentro de hilo. Nudo otra cosa que hilo. Globo terrestre ovillo, ahora ves mares, continentes, una flora ahí dentro, y no te vale tirar porque resiste, tires de los paralelos, tires de los meridianos. Todo iba tan bien cuando no era más que un ovillo, definición de hilo arrollado en cantidades. Tirás furiosa, porque esta cosa nueva es rebelde y te resiste, ves salir un poco de hilo, apenas un poco y adentro como un anzuelo de hilo que lo retiene, una pesca al revés y cómo estás de rabiosa. Sin salida salvo Alejandro Magno, sistema tonto añejo inútil. Cómo desenredarlo, el ovillo en alto contra la luz, hilos paralelos, diez, ochenta, oh cuántos. –Pero aquí contra el tuyo anzuelo de sí mismo, dos o tres retorcidos, seminudos y un hilito parado ahí, tu ovillito interrumpido ahí. Así es como se aprende a mirar una madeja, olvidada de la definición, hilo sobre sí mismo muchas veces
macana
Más cosas hay en el cielo y en la tierra, Horacio – En los ovillos que no son nada, su propia materia girando y girando inmóvil, universo translúcido en la mano, copa de árbol de lana con cosas adentro que enganchan los hilos.

*

Mi segundo día de descanso transcurrió en ocupaciones vagas; a veces mi hermano mayor me telefonea para que vaya a verlo a su estudio, y cuando estoy ahí me lee sus últimos estudios sobre la reforma del Código de Minería. Como estoy endeudado con él, lo escucho atentamente y hasta soy coautor de cinco artículos del proyecto. Mi hermano es de los que creen que un poeta debe estar signado por la desgracia, y sobre todo que eso debe vérsele, de modo que cuando me le aparezco rosado y sonriente me contempla con alguna sospecha y no tiene aún opinión formada sobre mi obra. Estoy seguro de que me bastaría beber el muy argentino vaso de cianuro para que él descubriera, sobre mi sepulcro, al lírico que hoy apenas imagina.

La visita a mi hermano me proporcionó, como siempre, oportunidad de verme tal cual soy por contragolpe, y salir de allí dispuesto a iniciar un buen examen de conciencia. Anduve por el centro, errático, me bebí un balón de sidra en La Victoria y tomé café en el Boston. Ambos lugares, sobre todo el Boston, aumentan notablemente mi poder introspectivo, porque en ellos viví muchas horas de buena y mala vida, y me basta tocas sus sillas u oler sus aserrines para sentirme menos bueno, menos feliz y menos estúpido.

*

Le puse el brazo en el hombro, la atraje contra mí y la besé en la nuca, en la garganta. Se abandonaba, blanda, pero seguía lejana y desasida; no era mía.

A partir daqui retirado do livro 62 - Modelo para armar

Mas no fundo sei que tudo é falso, que já estou longe do que acaba de me acontecer e que como tantas outras vezes se resolve neste desejo inútil de compreender, desconsiderando talvez o chamamento ou o sinal escuro da própria coisa, a inquietação em que me deixa, a exibição instantânea de uma outra ordem na qual irrompem lembranças, potências e sinais para formar uma fulgurante unidade que se desfaz no próprio instante em que me arrasa e me arranca de mim mesmo. Agora, tudo isso não me deixou mais do que a curiosidade, o velho lugar comum humano: decifrar. E o resto, a contração na boca do estômago, a certeza obscura de que por ali, não por causa daquela simplificação dialética, começa e continua um caminho.

*

De tudo isso ia ficando Hélène, como sempre sua sombra fria no mais fundo do portal onde eu me refugiara do chuvisco para fumar. Sua fria distante inevitável sombra hostil. Outra vez, sempre: fria, distante inevitável sobra hostil. O que vinhas fazer aqui? Não tinhas o direito de estar entre as cartas dessa sequência, não eras tu que me tinhas esperado na esquina da rue de Vaugirard. Por que teimavas em te somar, porque ouviria mais uma vez tua voz falando-me de um rapaz morto numa mesa de operação, de uma boneca guardada num ármario? Por que choravas de novo, odiando-me?

*

- Não, nenhum deles está louco, nenhum de nós está. Precisamente hoje à tarde pensei que não é qualquer um que fica louco, essas coisas é preciso merecê-las. Não é como a morte, entende; não é um absurdo total como a morte ou a paralisia ou a cegueira. Entre nós há alguns que bancam os loucos por simples nostalgia, por provacação; às vezes, à força de fingir... Mas não consiguirão.

*

Como dizê-lo a alguém se tu mesmo não poderias saber que menção do teu nome, o trânsito de tua imagem em qualquer lembrança alheia me despe e me vulnera, me joga dentro de mim mesma com esse impudor total que nenhum espelho, nenhum ato amoroso, nenhum reflexão impiedosa podem dar com tanta rancor; que te quero bem à minha maneira e que esse carinho te condena porque te torna meu delator, aquele que por me querer e por ser querido me despoja e me despe e me faz ver-me tal qual sou; alguém que tem medo e que não o dirá jamais, alguém que faz de seu medo a força que a leva a viver como vive.

A partir daqui retirado do livro Histórias de Cronópios e Famas

E seu ensinamento é este: "Não há terceira dimensão, a Terra é plana, o homem rasteja. Aleluia!" Talvez seja o Diabo quem diz essas coisas, e talvez você acredite nelas porque quem as dias é um rei.

*

Em casa de Jacinto há uma poltrona para morrer.
Quando a pessoa fica velha, um dia a convidam para sentar na poltrona, que é uma poltrona igual a todas mas tem uma estrelinha prateada no meio do encosto. A pessoa convidada suspira, mexe um pouco as mãos como se quisesse afastar o convite e depois senta na poltrona e morre.

*

O esmagamento das gotas
Eu não sei, olha, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que a esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e vê-se que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.
Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada de cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

*

E por isso lhe ocorria agora aquilo que, na verdade, deveria ter lhe ocorrido logo no início: se alguém não tem domínio sobre si, jamais poderia ter alcançado a singularidade. E, afinal, quem é que se dominava de verdade? Quem é que tinha a perfeita consciência de si, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou, ainda, no matrimônio para estar, pelo menos, só entre os demais?

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Moraes, Vinicios de

Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteçoDe noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

*

Pergunte pro seu Orixá
O amor só é bom se doer