quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Cony, Carlos Heitor

Pelo jeito como acelera o carro - mais do que pela resposta mal-educada - ela percebe que ele está insatisfeito e aborrecido. E como conhece o marido, sabe que o aborrecimento é fundo, deitará raízes, espalhará sombras em várias direções.

*

Finalmente, nada mais ambicioso. Tenho uma amante. Arranjei uma mulher, filhos, emprego, respeitabilidade - sou um homem estruturado, bem mereço o nome de doutor. No entanto, sinto que a obra não foi terminada. Para todos, componho um retrato perfeito e acabado, mas sinto que a mão que me modelou não retocou certos pedaços. Procuro saber onde ou em que intensidade não fui devidamente acabado - mas não consigo localizar o alejão. Não há espelho para se ver isso. Apalpo-me, mas não descubro nenhuma deformidade. Mas a sinto, quando rolo, trôpelo, sangrando pelas minhas chagas.
E o pior não é a consciência do aleijão. É não saber, até hoje, o que pretendeu de mim o autor dessa obra ao fazer-me assim, deixando-me pedaços mortos e insepultos, flancos abertos e sensíveis para as dúvidas, as iras, as lágrimas.
Realmente, sou um homem. Mas isso não chega a ser um consolo, embora seja uma miséria.

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[sobre os últimos dias antes da separação]
Lentamente nos consumiríamos, dia a dia, gozando das últimas claridades de nossa tarde, pronlongando-as em nós mesmos, sem escamoteações, sem truques. E quando a noite intrasferíveil e próxima chegasse, teríamos a certeza de que esgotarámos o nosso prazo. E que até o último instante encontráramos força e dignidade para amar, embora não mais merecêssemos o amor.

Retirados de Antes, o Verão, editora Companhia das Letras, 4a edição, 1996.

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