Joelhos juntos, vai olhando os pés como se contemplasse a linha do horizonte. Saudade do tempo em que tinha saúde para desprezar o próprio corpo. Agora pouca convicção lhe resta, mesmo quando se lamenta:
- Sonhar me deixa muito cansado. Dá um trabalhão danado, sonhar.
- Se o senhor não sonhasse, já teria arrumado as ferramentas na caixa.
As ferramentas estão espalhadas pelo soalho. Ele recusa arrumá-las na devida caixa.
- Fazem-me companhia - justifica assim a desordem. Dona Munda tem outra explicação para aquele caos: o marido ainda acredita poder ser chamado de emergência.
- Cure-me de sonhar, Doutor.
- Sonhar é uma cura.
- Um sonhadeiro anda por aí, por lonjuras e aventuras, sei lá fazendo o quê e com quem... Não haverá um remédio que me anule o sonho?
O médico ri-se, sacudindo a cabeça. Retira da sacola o estetoscópio, mas o doente, mal pressente a intenção, ergue-se, esquivo. Sidónio deixa escapar o aparelho que tomba entre chaves de fenda, alicates e apetrechos do ex-mecânico. Bartolomeu espreita de lado, com desconfiança de bicho:
- Todos elogiam o sonho, que é o compensar da vida. Mas é o contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos.
- Sonhar só o faz ficar mais vivo.
- Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver, Doutor.
*
Mais nova, escutava as outras lamentarem-se do destino, elas que estavam na flor da idade. Nunca lhe doeu tanto uma inveja. Porque, a ela, nenhuma idade tinha sido de flores. Amarelecida a idade, esbateu-se o sonho de ser pétala, simples lembrança de fragrância.
*
No resto, Mundinha partilha a condição das demais mulheres da Vila: envergonhada de ter nascido, temente de viver e triste por não saber morrer.
- Posso perguntar uma coisa? Por que razão vocês passaram a dormir separados?
- A vida é um rio, Doutor; a água junta e separa.
- Você é feliz, Dona Munda?
- Não é que seja infeliz. Eu não sou é feliz.
(...)
- Uma coisa aprendi na vida. Quem tem medo da infelicidade nunca chega a ser feliz.
*
Quem tinha vivido ali? O recepcionista, subterfugitivo, vagueia: não existe o ter vivido. Viver é um verbo sem passado.
*
Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedora para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideiais mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormirmos.
*
Somos donos do Tempo apenas quando o Tempo se esquece de nós.
*
- Não sou eu que fumo, Doutor Sidonho. O cigarro é que me está fumando a mim.
- Nisso estamos de acordo. O senhor não devia tocar mais em cigarro.
- O Doutor me desculpe, mas o senhor não entende o fumar.
- Não entendo, como?
- Não é o tabaco que a gente consome. A gente fuma é a tristeza.
*
O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. (...)
- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho - respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
- Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente.
- Sei prevenir-me.
- E porquê, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.
- Que olhar é meu nos olhos teus?
*
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
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Há esperas que nunca se aprendem. Mesmo sob o dilúvio, continuaremos aguardando a chuva. É de outra água que esperamos.
*
Como diz munda: apenas um mortal pecado pode curar a doença de viver.
*
Talvez seja e espessura desse céu que faz os cacimbeiros sonharem tanto. Sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino que é sempre tardio e pouco.
Trechos retirados do livro Veneno de Deus, Remédio do Diabo, da editora Companhia das Letras
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Um comentário:
Nossa, já li esse livro e copiei praticamente os mesmo trechos que você. Adorei seu blog, parabéns.
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